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As pessoas que “caírem de paraquedas” em “Dancer In The Dark”, sem fazerem a menor ideia do que a obra cuida, acreditando que é um musical tradicional, muito provavelmente vão se decepcionar – talvez até cortem os pulsos.

Lars von Trier, ao mesmo tempo em que homenageia apaixonadamente um gênero consagrado, não poderia subvertê-lo mais – quase um anti-musical.

Selma é uma imigrante tcheca que vive nos Estados Unidos, onde trabalha em uma metalúrgica – muitas vezes em dois turnos. No tempo livre, sua maior alegria é participar de um teatro independente focado em musicais. Sem recursos financeiros, a moça se aloca em um trailer no jardim de um casal aparentemente estável, a quem paga um aluguel. Simpáticos, eles cuidam do filho da protagonista quando ela não está em casa. Selma não tem condições de comprar presentes e não gosta de depender dos outros, no entanto, por mais contrariada que fique ao descobrir que o filho recebeu um presente dos vizinhos, abre um genuíno sorriso ao vê-lo andando de bicicleta. O diretor constrói um cotidiano rígido e, através dele, expõe quão melancólica, repetitiva e restrita é a vida de Selma. A protagonista é otimista por natureza, não enxerga maldade em ninguém e não reclama de absolutamente nada, seguindo em frente com uma alegria pura e contagiante. A questão é bem pior do que parece. Não se trata apenas de uma mulher presa a uma existência pacata, Selma literalmente não enxerga. Sua gradativa cegueira é hereditária, surgiu na adolescência e, inevitavelmente, atingirá seu filho.

A mudança para os Estados Unidos foi pensada, visando a operação de Gene. Suas horas dentro da perigosa, cinzenta e decadente metalúrgica denotam uma paixão imensurável, afinal, ao mexer em máquinas e placas, ela coloca sua vida em risco. Em casa, Selma guarda o dinheiro contado numa caixinha. As pessoas perguntam por que a protagonista não gasta essa quantia com presentes ou numa vida um pouco mais confortável e ela mente, afirmando que envia mensalmente um valor para o seu “pai”, Oldrich Novy, um famoso ator tcheco. Além da peça, Selma vai recorrentemente ao cinema assistir aos seus musicais favoritos, acompanhada de Kathy, sua melhor amiga e que acumula uma função quase materna, a ajudando no trabalho e em outras ocasiões. A protagonista não tem vergonha de sua situação, só não quer ser tratada como uma pobre coitada, afinal, um de seus grandes prazeres é conversar e despertar bons sentimentos nos demais.

Jeff está sempre a aguardando para dar carona, é apaixonado por Selma e é, juntamente com Kathy, o personagem mais gentil e sensível da obra. A protagonista adoraria dar uma chance a ele, mas sente que disponibilizando atenção a outra pessoa, estaria negligenciando seu querido filho. No fundo, Selma gostaria de expandir sua felicidade, todavia, tem noção de que foi encarregada de uma missão maior do que si mesma.

Seu vizinho, Bill, vai ao seu trailer e relata uma profunda angústia, envolvendo sua difícil situação financeira – à beira da falência – e os excessos de Linda, sua esposa, que provavelmente o largaria ao descobrir a verdade. Selma, notando a fragilidade do “amigo”, decide se abrir, fala sobre sua doença e o dinheiro guardado para a operação do filho. O filme então decide esfacelar a alma do espectador, que é obrigado a assistir a uma das trajetórias mais deprimentes da história do cinema, quiçá a maior.

Completamente cega, a protagonista não tem a menor condição de continuar na peça e inventa uma desculpa para abandonar um de seus maiores prazeres. A escuridão influencia diretamente em seu rendimento e após quebrar uma máquina, é demitida. O diretor do musical e seu chefe não são figuras maquiavélicas, seguem uma conduta responsável e digna, sem covardia e injustiça, até porque desconhecem a doença de Selma.

A quantia acumulada ainda não era suficiente e ela terá que contar com a empatia do médico. O que a protagonista certamente não esperava é que Bill invadisse sua casa e roubasse o dinheiro. Em uma cena posterior, von Trier já indicava o caráter duvidoso do vizinho, que finge ter ido embora só para ter certeza de que Selma não enxerga nada. Linda é convencida de que a protagonista seduziu seu marido a fim de roubar sua “fortuna”. Bill é um policial… que ironia. Sim, o homem que deveria simbolizar a ética, a honestidade e a lei destrói a vida de uma mulher completamente indefesa. Na primeira vez que assisti a “Dancer In The Dark”, confesso que a personagem principal me irritou um pouco, a considerei demasiadamente ingênua. Erro meu. Lars von Trier nos coloca diante de uma protagonista que só enxerga a bondade alheia e que não deseja mal a ninguém. A questão não é Selma ser “boazinha”, são os outros – as pessoas, a justiça, o sistema… –, terrivelmente maliciosos. Normalizamos o comportamento do policial e estranhamos o da protagonista. Que mundo é este em que vivemos?

“Por que você não disse a verdade à minha esposa?”, pergunta Bill para Selma, cuja resposta define seus princípios: “bico fechado, certo?”

Ela não sai dali sem a quantia, não por se prender a posses, porque sabe que é o certo a se fazer, batalhou pelo dinheiro. Em uma sequência angustiante e muito bem elaborada, Selma é literalmente obrigada a matar Bill, se autodestrói por amor e é presa, condenada à pena capital. No tribunal, fica muito nítido que as autoridades não estão interessadas em realizar um julgamento honesto, mas em se autopromover e derrubar o acusado, transformando aquele espaço num circo. Selma nunca abandona suas convicções, não expõe o filho nem o homem que atormentou sua vida, afinal, no início, prometeram manter seus segredo intactos.

Os últimos minutos reservam algumas reviravoltas, entretanto, von Trier, assim como sua protagonista, se mantém fiel ao tom adotado, terminando a obra da forma mais crua, visceral, aterradora e desesperançosa possível.

A fotografia e a direção de arte optam por tons acinzentados e de sépia que enfatizam a sujeira humana e a melancolia presente no filme. A presença de fumaça e da escuridão marcam a trajetória solitária e altruísta de Selma. Seu figurino, inicialmente, vermelho – amor e afeto – ou florido, no terceiro ato, na cadeia, se confunde com a cela e a cama da prisão.

Os cortes abruptos são uma tônica na carreira de von Trier e conversam diretamente com sua abordagem crua e desconfortável. Abusando da câmera na mão, close ups, e planos-detalhe, o diretor nos insere na cruel realidade em que Selma está inserida, salientando que daquele mundo ela dificilmente sairia viva. Da mesma forma, seus planos fechados, que invadem o rosto da protagonista revelam uma bondade a ser estudada e refletida por todos nós. O plano holandês e os planos-detalhe de seus pés e mãos emulam a instabilidade física da personagem. Vocês devem estar se perguntando: e o musical?

Cega, Selma depende de sons para sonhar acordada, e, a partir de ruídos simples cria os seus próprios números musicais, nos quais todos são bons, sorriem, cantam e dançam. Na fábrica, no tribunal, na prisão, na casa de Bill, seja lá onde for, Selma imagina sequências absolutamente lindas que, simultaneamente, nos confortam e entristecem. As transições do mundo onírico para o real não são nada suaves e pontuam a brevidade do “espetáculo artístico e humano”. As músicas são belas e pungentes, as coreografias impressionam e von Trier, de certa forma, brinca com a artificialidade do gênero – uma pureza que só existe nos sonhos.

Sua abordagem nessas cenas muda consideravelmente, em vez da claustrofobia cotidiana, temos planos abertos e os personagens se movimentam livremente. A fotografia e a direção de arte também se transformam, indo da frieza a tons fortes e vivos.

Björk oferece uma performance espectacular, repleta de delicadeza e honestidade. Poucos rostos demonstram emoções com tanto realismo e pureza. Sua personagem não esconde nada, está tudo em sua feição – sem cinismo ou truques. Sua suave, frágil e contagiante voz complementa sua caracterização com perfeição. Björk foi uma escolha certeira, não apenas por sua característica física e talento, mas por ser uma cantora fenomenal. Ela levou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes e “Dancer In The Dark”, esta obra prima sobre uma mulher que se sacrifica pelo filho, venceu a Palma de Ouro. 

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