Skip to main content

“Cléo from 5 to 7” é um filme extremamente delicado que, sim, tem jump cuts – imortalizados por Godard -, mas que se vale de movimentos de câmera leves e belos planos longos. Com sua abordagem naturalista e humana, Agnès Varda realizou uma das obras mais influentes e importantes de todos os tempos.

Simbólico e paradoxal, o filme acompanha um dia na vida da protagonista, uma cantora pop que espera ansiosamente pelo resultado de um exame.

Cléo é jovem e bela. A morte a essa altura não é apenas uma injustiça, é visivelmente uma impureza que não deveria ser permitida. Se existe algum tipo de força que define o caminho dos seres humanos, podemos dizer que o roteirista escreve a história em linhas tortas e tolas.

As cores se vão, dando espaço ao preto e branco, assim que ela sai da consulta com uma cartomante. A protagonista não parece adoecida, mas veste um roupão branco, remetendo, instantaneamente, a um anjo. Logo depois, muda para um vestido preto, que conversa com sua angústia, futuro e dura trajetória. Cléo canta lindamente, mas a letra da música é aterradora. Ninguém liga para os seus pensamentos, ignoram o medo acreditando que se trata de um exagero.

Seu arco é melancólico. Não por se concentrar em sua deterioração física – o que não acontece -, mas por acompanhar seus passos por uma Paris contraditória. Os estudantes arruaceiros, os jovens sedutores, a ida ao cinema, a criança na rua e os cafés lotados contrastam com as notícias da Guerra na Argélia, as constantes operações de Edith Piaf – a rádio nos informa -, o homem baleado e o sujeito que fura o próprio bíceps. As pessoas reclamam da música alta, discutem mais do que conversam e suas feições denotam um certo desânimo. Eles não importam, são meros “objetos” no caminho de Cléo, que passa o filme inteiro perambulando e observando, vagando como um fantasma ao lado dos vivos. Angustiada e assustada, a protagonista é quem chama a atenção do espectador para uma beleza rara. Seja descendo os degraus de uma escada, seja cantando, Cléo é quem flutua pelas ruas parisienses, ratificando que aqueles que podem dormir tranquilos, valorizam pouco o que têm. Sem destino, ela acaba esbarrando em uma amiga, que se preocupa com a possível doença, porém se despede dizendo: “até a noite”, como se tivesse se esquecido o que a protagonista havia acabado de lhe dizer. Cléo pede para o taxista dirigir devagar, quer olhar tudo com clareza, guardar cada fragmento em sua memória. O amor exige uma entrega completa e ela nunca havia encontrado alguém que merecesse tal esforço. Num parque – o ambiente mais vistoso da obra -, Cléo encontra Antoine, um soldado a caminho da Guerra na Argélia. Romântico e culto, ele é capaz de tirar risadas genuínas da protagonista. Caminhando por paisagens exuberantes, os dois se aproximam. Perto de receber o resultado, a protagonista demonstra o que já havíamos vislumbrado, agora em sua completude. Próximos do fim, Antoine e Cléo são os mais vivos dentro do ônibus e da imensa Paris, que abriga seres preocupados com o que não deveria importar. Ele pede a sua foto, a quer sempre por perto. Por que trocam endereços? Não é um ato racional, acontece por um interesse mútuo e verdadeiro, que mexe com seus corações e desliga seus cérebros conturbados por um instante. Como figuras tão esbeltas, jovens e passionais representam o fim, enquanto casais e rostos decadentes passeiam cheios de saúde, sem muito a dizer? Qual o verdadeiro sentido da existência humana e por que ela insiste em pregar peças?

Até encontrar Antoine, Cléo observava o que estava prestes a perder e, gradativamente, se entristecia. Não pelo seu provável destino – também -, mas por perceber que não tinha muito o que fazer naquele espaço. O som do relógio reforça o tempo que passa e a desmistificação do que um dia foi um lugar “perfeito”. O ponto de vista mais temido traz à tona a realidade cristalina: os amigos não são tão especiais, os vivos não fazem jus à essa condição e os mortos são os únicos capazes de enxergar o que está a um palmo de todos os narizes. Felicidade e beleza são coisas simples de se alcançar quando a mente se desocupa. Sim, a companhia ideal é essencial, mas isso é uma obra do acaso, assim como o câncer e a Guerra na Argélia…

A vida é imprevisível, igualmente espetacular e trágica. É exatamente por esse motivo que, no fim, o entorno do filme deixa o espectador mais preocupado do que o exame em si. Temos que ser honestos o suficiente para admitirmos que somos “o casal” que briga ou “os casualmente despreocupados que perambulam por aí”. É a única forma de evitar um desastre maior do que aquele que já é inevitável.

No fundo, quando a protagonista retira sua peruca e o roupão vistoso, assume o ponto de vista que desconhecia e que nos faz refletir profundamente.

Varda merece todos os elogios por utilizar uma abordagem suave, que possibilita a total compreensão do ambiente e do comportamento humano – como se olhássemos um espelho. A variação entre planos de Cléo caminhando livremente por Paris, com quadros fechados que ressaltam a claustrofobia da personagem – potencializada pela delicada narração – ou a crescente intimidade com o soldado – a sequência no ônibus é o melhor exemplo dessa aproximação/cumplicidade – é espetacular. Varda faz uso de planos subjetivos e filma rostos distintos, partindo para um estilo quase documental de uma maneira orgânica e poderosa. Ainda assim, o momento que mais chamou a minha atenção foi aquele em que Antoine diz: “nós temos tempo” e, rapidamente, a montagem vai de um plano americano para um aberto. O corte é abrupto e destaca, simultaneamente, o prazer que um sentia ao lado do outro e a “ingenuidade” da frase – mais do que perdoável, necessária.

O desfecho é brilhante. Varda não está interessada em dar um fim aos personagens, ela alimenta aquele momento e o deixa eternamente conosco.

Sobre a direção de arte, destacaria a presença incessante de espelhos, cuja função é, igualmente, objetiva e metafórica. A beleza de Cléo é notável, entretanto, o que mais importa para Varda é o olhar empático para a realidade das mulheres, muitas vezes ignoradas ou tratadas com desprezo. O espelho também se refere a nossa ótica, que se mistura com a trajetória imersiva e transformadora da protagonista.

Corinne Marchand oferece uma performance complexa e alcança extremos com uma pureza impressionante – extrema melancolia e alegria angelical. A cena em que canta é extraordinária, justamente por encapsular sua personalidade em pouquíssimo tempo. O que é belo, se torna doído e ela se vê num buraco escuro.

Dividido em curtos capítulos e rodado quase que em tempo real, “Cléo from 5 to 7” é uma obra prima poética e inesgotável. Um dos principais marcos da Nouvelle Vague.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!