Woody Allen é um diretor reconhecido por seus filmes nova iorquinos, românticos, inteligentes e engraçados. Dentro de sua extensa filmografia existem alguns experimentos, obras em que ele saiu de sua zona de conforto e se aventurou em gêneros distintos.
“Cassandra’s Dream” é um belo exemplo de como Allen, ainda que super premiado e exaltado, é um diretor subestimado, repleto de trabalhos fascinantes que foram esquecidos ou injustamente massacrados pela crítica.
Terry e Ian são irmãos e grandes amigos que dividem certas semelhanças, mas que, de, modo geral, são completamente diferentes.
O primeiro é meio bobo, trabalha consertando carros, nunca explorou seus sonhos, aposta compulsivamente e é caracterizado pelo próprio diretor como um perdedor – não à toa, o espectador assiste apenas as suas derrotas.
Em contrapartida, Ian, apesar de ajudar o pai em seu restaurante, é ambicioso, tem planos importantes e está sempre observando oportunidades interessantes de evoluir socialmente.
A diferença entre os dois pode ser notada também em suas aparências. Enquanto Terry surge quase sempre com a cara meio amassada e parece não ter muito critério para escolher roupas, Ian se veste como um executivo, usando ternos e óculos charmosos.
Mesmo com ambições distintas, ambos dividem um problema similar: a falta de dinheiro.
Eles compram um pequeno veleiro e vislumbram uma liberdade jamais imaginada.
Terry aproveita a sua maré de sorte e ganha uma bolada apostando; Ian encontra a mulher de seus sonhos, uma atriz em ascensão, e se envolve diretamente com investimentos em hotéis de luxo na Califórnia.
As coisas caminham para uma direção otimista e revigorante, contudo, Terry contrai uma dívida impagável com seus agiotas e Ian não tem fundos suficientes para de fato entrar no ramo dos hotéis.
Eis que surge Howard, tio deles, um cirurgião plástico poderoso. Os irmãos acreditam que terão que se ajoelhar, mas são pegos de surpresa quando Howard é quem implora por um favor. Os dois até sorriem por um instante, porém se desmontam ao escutarem o que terão que fazer: matar um homem que tem documentos capazes de incriminar Howard e colocá-lo na cadeia por bastante tempo.
Questões morais já foram exploradas por Allen em “Crimes e Pecados” e “Match Point”. Ele sabe muito bem como conduzir esse tipo de história e o elemento familiar apenas enriquece o estudo de personagens.
Nenhum dos dois se sente muito à vontade com a situação, todavia, sabem que ela os salvaria.
Ian apresentaria Angela para diretores importantes em Hollywood e se estabeleceria como um grande investidor, enquanto Terry montaria a sua loja de equipamentos esportivos e largaria de vez seus vícios.
Gradativamente, entendemos perfeitamente quem é quem nessa trama. “Quando você olha de perto, enxerga todas as imperfeições”, diz Ian para tranquilizar o irmão, que não enxerga no assassinato a saída ideal para os seus problemas. Ainda assim, ele é convencido e o plano é executado com perfeição.
A grande questão é: como um ser humano reage após cometer algo dessa natureza? Não há resposta certa; alguns esquecem e seguem em frente como se nada tivesse acontecido, outros entram em pânico e têm um colapso mental.
Assim como nos dois filmes citados acima, Allen não julga seus personagens nem os condena, muito pelo contrário, entende que essa é uma situação extrema e que, em suma, os seres humanos são egoístas, agem por instinto e que a palavra moral é muito bonita quando utilizada em mesas de jantar ou conversas casuais. Seu texto é tão bom, que coloca o espectador não em uma posição de “juiz”, mas de compreender a sua própria podridão e imoralidade. Há quem admita que talvez fizesse algo similar no lugar dos protagonistas e há quem diga que nunca pensaria em fazer algo do tipo. Alguém está mentindo…
Postos em situações de aperto, os seres humanos tendem a olhar para si, faz parte de nossa natureza e é por isso que andamos firmemente em uma linha que nos exime desse tipo de escolha.
Ian e Terry não são monstros, apenas se colocaram em uma posição de optar (ou não) pelo que ninguém quer. Se Allen já os caracterizava com diferenças sutis, a partir daí entra em um terreno mais delicado, expondo o interior de cada um e como reagem ao assassinato.
Ian assume a figura do executivo, se envolve com pessoas influentes e passa a dar presentes caros para Angela. Ele conseguiu, passou pelo teste e estava vivendo a vida que sempre sonhou, sem remorsos ou fantasmas.
Por outro lado, Terry admite de vez a condição de alcoólatra e toma remédios sem responsabilidade. Ele fala sobre suicídio, depressão, se entregar para a polícia e não consegue dormir.
Estaria sendo hipócrita se afirmasse que Terry é o personagem mais relacionável, afinal, nunca passei por algo parecido e é muito interessante enxergar os dois lados da mesma moeda – dor e alegria -, como diferentes seres humanos encaram os mesmos dilemas.
O grande problema é enxergar nesse tipo de situação uma saída para tudo, um vício – é aí que Ian se torna um tanto “malicioso”. O mais triste não é o assassinato em si ou a “imoralidade”, mas o fim de um laço bonito entre dois irmãos que se amavam.
A direção de arte é cuidadosa ao retratar a casa dos pais de Ian e Terry com simplicidade e o restaurante em que Howard leva a família para almoçar com toques de dourado e um salão espaçoso, expondo as diferenças entre eles.
A fotografia de “Cassandra’s Dream” é especialmente fundamental no terço final, quando os irmãos enfrentam as consequências do assassinato. Ian está sempre em ambientes abertos, claros e cercados pela natureza, ressaltando a sua tranquilidade, enquanto Terry é marcado por tons azulados e cinzentos, além de ficar bastante em casa – claustrofobia e ansiedade.
A trilha sonora de “Cassandra’s Dream” é evocativa, principalmente para trazer uma atmosfera tensa e repleta de incertezas.
A direção de Woody Allen é bastante segura e foge de qualquer exibicionismo. A cena do assassinato é brilhantemente conduzida, desde a longa caminhada até o desfecho, que o espectador não assiste. No entanto, seu grande mérito é a direção de atores.
Ewan McGregor está excelente como Ian, um jovem charmoso, cínico, ambicioso e passional que ama a sua família, assim como o seu futuro. O ator poderia facilmente transformar o personagem num ser desprezível, mas sua performance é honesta e repleta de nuances. McGregor passa por fases, indo do bom filho para um homem confiante.
Colin Farrell faz de Terry um personagem, a princípio, sem ambição alguma, que se torna angustiado, deprimido, inseguro e tomado por uma culpa impressionante. Sua derrocada emocional é impactante e o ator a torna genuinamente tortuosa.
Há um diálogo entre os dois que define bem suas personalidades:
-Infringimos a lei de Deus. (Terry)
-Que Deus, seu idiota? (Ian)
“Cassandra’s Dream” é uma jornada com leve toques de ironia e de tragédias gregas; uma forte carga dramática e dilemas que são óbvios apenas na cabeça de falsos moralistas.
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