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David Shayne é um diretor e roteirista de peças de teatro. Os produtores da Broadway têm o costume de mexer nas suas obras, que não atingiram o sucesso esperado. Por um lado, podemos dizer que o protagonista é um alter ego de Woody Allen, que critica o domínio que terceiros obtêm sobre o trabalho de mentes criativas; em contrapartida, o cineasta expõe com o seu habitual humor, quão pretensiosos “pseudo artistas” são. Sim, a recusa de produtores pode ter a ver com “uma voz” à frente de seu tempo, como também pode ser um enfático atestado de falta de talento.

Em determinada sequência, um colega de David diz, orgulhosamente, que escreve um roteiro a cada doze meses há vinte anos e que nenhum foi aceito e o protagonista responde: “você é um gênio”. Imersos num ambiente autoindulgente e arrogante, essas figuras não vão a lugar algum, simplesmente porque lhes faltam ferramentas que não podem ser adquiridas em lojas de conveniência.

Eis que surge a grande oportunidade: a peça de David é aceita e já tem um patrocinador. Há uma única exigência: a namorada do provedor deverá participar do espetáculo. Mesmo ela sendo insuportável e desprovida do menor talento, o protagonista não pode fazer nada, afinal, Nick Valenti é um poderoso mafioso e o seu “repentino interesse” por arte é apenas uma forma de agradar a mimada Olive.

O resto do elenco inclui Warner Purcell, cujo apetite voraz é um sintoma de seu nervosismo, e Helen Sinclair, que sobrevive graças ao seu nome.

Os ensaios fluem com alguns conflitos e discordâncias. O texto tem pontas soltas, não soa autêntico. É aí que aparece Cheech, capanga de Nick, responsável por cuidar de Olive, cuja dica dá uma outra dinâmica à peça.

David se sente mal, não pela alteração no roteiro, mas por perceber que a ideia de um criminoso era muito melhor que a sua. Ele passa a encontrar Cheech e, gradativamente, muda literalmente tudo. Em nenhum momento, o mafioso assume o crédito pelos elogios que o protagonista recebe, no entanto, interiormente, passa a tratar aquela como a sua peça, a ponto de expulsar David de um bar e reescrever ele mesmo os diálogos.

Tudo precisa ser perfeito e Olive é o elo fraco, capaz de destruir um trabalho árduo. A princípio, seu protetor, Cheech passa a enxergá-la com um alvo e o protagonista, que se queixava por sua participação, é quem a defende.

A máfia vai ao teatro. Cheech poderia acabar com a carreira de David, todavia, aprendeu a não entregar seus colegas. Não poderia faltar violência e Allen, genialmente, a torna extremamente engraçada.

Não adianta se comportar como um intelectual e estudar durante anos, o talento é inegociável e intrínseco. Cheech sempre viveu nas ruas e conhece a maneira que as pessoas se expressam. Suas alterações advêm de seu conhecimento perante o comportamento humano.

O fato de um mafioso reescrever uma peça da Broadway é genial por si, mas Allen vai além, busca entender o motivo do sucesso de Cheech e da incapacidade de David. A jornada é engraçadíssima e culmina no amadurecimento do protagonista. Não era bem o que ele queria no início, mas era a verdade, tão palpável quanto os diálogos pensados pelo criminoso. Queremos e achamos que somos alguma coisa, e por mais doloroso que seja, precisamos abrir os olhos e seguir em frente, caso contrário, nos fecharemos a uma existência vazia e fracassada.

Como de costume, Allen confecciona coadjuvantes sensacionais, sendo Helen a principal. Egocêntrica e desesperada, ela se coloca num pedestal, porém sabe que não o ocupa há décadas. David, ainda mais após as perspicazes mudanças, é visto como um alvo, a sua chance de retornar aos holofotes. Helen o seduz, finge ser uma mulher frágil e planeja protagonizar inúmeras peças de sucesso. Sua casa parece um museu abandonado – luxo e decadência. A iluminação fraca conversa com sua atual condição: uma estrela apagada. A direção de arte merece elogios por caracterizar precisamente os personagens. David mora num apartamento pequeno e opaco, sem vida e personalidade. Nick e Olive vivem em uma mansão extravagante e brega. O quarto da aspirante à atriz é inteiramente roxo, denota seu desejo pelo sucesso e indica, sutilmente, qual será o seu desfecho.

Quanto mais se afasta da ilusão artística, o protagonista se vê imerso a ambientes escuros e sem cores vivas – insegurança e busca por um sentido.

O vermelho é pontuado em momentos específicos, trazendo o gangsterismo à tona. Os mafiosos atuam na escuridão, em becos, e o cuidado em trazer essa realidade é notável.

Os movimentos de câmera de Allen são elegantes e a sua opção por planos longos confere uma fluidez enorme ao filme. Os momentos mais “abruptos” são justificados por cortes que elevam a comicidade a partir de um timing perfeito – a contradição é muito bem trabalhada.

Allen compõe arcos fascinantes e desfere frases hilárias com uma facilidade invejável.

“Aprendi a escrever antes de colocar a escola em fogo”.

Enciumado, Nick pergunta para Olive: “Quem é esse tal de Hamlet?”

Dianne Wiest ganhou o Oscar de atriz coadjuvante merecidamente. Ela expõe a decadência, a arrogância e a grandiosidade de Helen com o talento que lhe é peculiar e nos oferece uma performance cômica brilhante nas cenas íntimas com o protagonista. Wiest consegue se colocar, simultaneamente, abaixo e acima de David – o controla.

John Cusack transita impecavelmente dentro de seu arco, esbanjando carisma, humor e encarando questões existenciais com honestidade. Seu objetivo inicial é se tornar uma realidade e, aos poucos, encontra o homem dentro do artista fajuto.

“Bullets Over Broadway” é o tipo de filme que somente Woody Allen tem a capacidade de realizar.

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