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Em 1996, Lars von Trier deu início a “trilogia do coração de ouro”, cujo nome não poderia ser mais preciso. “Breaking The Waves” divide inúmeras semelhanças com o último filme, “Dancer In The Dark”, lançado em 2000. O uso constante de câmera na mão, os close ups e planos-detalhe que invadem os rostos dos personagens, a fotografia granulada e em tons frios – acinzentados e de sépia – que eleva a crueza/sujeira e as protagonistas que inspiram poderosas reflexões no espectador são os aspectos mais notáveis e que, inevitavelmente, criam um forte laço entre as duas obras.

Em um vilarejo na Escócia, Bess se casa com Jan. “Queria esperar por você”, responde a protagonista após o marido questionar sua solidão. Sensível, von Trier enche a tela com o amor puro e romântico do casal, que ri até das “imperfeições” alheias – o ronco de Jan provoca gargalhadas em Bess. O sexo é tratado pelo diretor como a conexão definitiva entre seres que se amam e que sentem um prazer intenso ao se conectarem.

Jan trabalha em uma plataforma de petróleo e acaba sofrendo um acidente que o deixa tetraplégico. Culpada por pedir a Deus o retorno precoce do marido, a protagonista é surpreendida com o requerimento de seu amado: ele quer que ela transe com outros homens e relate minuciosamente as experiências. Sem se mexer e sem poder tocá-la, Jan é um corpo estendido numa maca. Sua vida chegou a um estágio em que a falta de amor é destruidora, sua felicidade era tanta, que literalmente qualquer coisa que remeta ao velho prazer é suficiente. O maior sacrifício não é de Jan, mas de Bess, que projetou no marido a imagem idealizada do homem dos sonhos, foi a única pessoa com quem se relacionou e dividiu intimidades, ainda que por um breve período.

A saída simples para o espectador é taxar Jan de egoísta e misógino, e Bess, de manipulável e estúpida, no entanto, assim como todas as obras de Lars von Trier, esta nega análises óbvias. A Igreja e seus líderes, o contraponto do casal, se consideram paladinos da moral e da ética, quando, na verdade, entoam palavras de amor com rancor e hostilidade, tratando os fiéis com frieza e descaso. “Não se pode amar uma palavra. Você pode amar outro ser humano”, diz Bess, expondo a farsa por trás de toda uma comunidade. Os padres não estão ali para aconselhar o próximo, apenas para julgar e cravar o destino dos mortos a partir de conceitos arcaicos e porcamente decorados.

Não é Deus que decide se a pessoa deve ir ao Céu ou ao Inferno? Chamar uma cabana decorada e comandada por figuras que desconhecem o termo empatia de “A Casa de Deus” não seria um ato pretensioso, pecaminoso e irresponsável?

Na terra de ninguém, manda quem veste as roupas mais simbólicas, se expressa contundentemente e se coloca acima de tudo. Mentes limitadas elevam o ego e o patamar dessas figuras, que se consideram Deuses, o que é um tanto contraditório, afinal, fazem sermões baseados nas “próprias palavras”?

Em mãos insensíveis, vingativas e retrógradas, a religião deixa de ser um conforto e se transforma numa dor maior que qualquer outra.

Cunhada de Bess, Dodo se preocupa com a protagonista, porém fica no meio do caminho, entre ajudá-la e seguir o caminho comum. O mesmo vale para Dr. Richardson, que inicialmente descreve Bess como neurótica e psicótica, percebendo, no fim, que sua única doença era a bondade.

Jan não é tarado nem impulsivo, faz esse duro pedido à esposa após perceber que não sente absolutamente nada – sua existência passou a ser oca e a sua tentativa em enganar os demais com sorrisos discretos é desoladora. Pura, doce, carinhosa, carente e inocente, Bess não confia nos Padres, então conversa diretamente com Deus, em seu subconsciente – inclusive simula a voz Dele -, que “entende” sua situação. A protagonista precisa apenas de uma aprovação para alimentar o desejo do marido, que afirma que sobreviverá caso relembre o gosto do amor.

No fundo, Jan sabe que dificilmente sairá de sua situação e que Bess jamais admitiria outra relação. Sua intenção é libertá-la, mas a protagonista não sairá da corrente de forma alguma, vive para seu primeiro e único amor. Bess acredita que a única maneira de evitar uma tragédia é vendendo o seu corpo, e faz isso, deixando claro o seu desconforto, chegando a chorar e vomitar.

“Breaking The Waves” é uma obra profundamente romântica e espiritual, que encontra numa “religiosa” autodestruição uma santa, não uma prostituta. Não interessa se Bess abandona sua personalidade, o que importa é a ligação transcendental que mantém Jan, desencorajado pelos médicos, vivo. É fácil enxergar a tristeza e o inusitado, notar um amor que nos obriga a duvidar de convicções e a admitir que talvez exista algo além do óbvio que demanda esforço.

O gradativo sacrifício de Bess é duro e coloca o espectador para refletir sobre pensamentos, atitudes e gestos cotidianos. É curioso perceber quão parecidos somos com Dodo e Richardson, que, por mais cuidadosos que sejam com a protagonista, são incapazes de ver a beleza de seu ato. Somente no desfecho – assim como nós – entendem a magnitude de seu feito, coragem e efeito perante os demais. O ceticismo e a maldade cegam pessoas ordinárias, cercadas por um padrão danoso e exaustivo.

Se Jan sobrevive e volta a andar, é porque Bess se sacrificou; se ela finalmente aceita a morte, é porque perde as esperanças na cura do marido e decide se juntar a ele.

Lars von Trier nunca foi tão poético, sua escolha final é simplesmente genial. Um verdadeiro tapa na cara daqueles que se colocam em um pedestal. A fé é interna, um estado de espírito, um sacrifício, um amor real, é a certeza de que a sua ação é para salvar a pessoa mais especial de sua vida. Uma igreja sem sinos… problema resolvido.

A direção de arte, aliada ao trabalho de fotografia e a abordagem do cineasta, compõe um universo claustrofóbico, sem cores e esperança.

Um dos raros momento em que a câmera se distancia dos personagens por um tempo razoável, é quando os padres se reúnem para conversar, ressaltando o afastamento daqueles seres em relação aos verdadeiros conceitos católicos e humanos.

A estrutura capitular é maravilhosa, não apenas por caracterizar os períodos vividos pela protagonista, mas, principalmente, por serem introduzidos por canções espetaculares – “Goodbye Yellow Brick Road”, “Suzanne”, “Life On Mars”, “In A Broken Dream”, entre outras – e imagens significativas, como, por exemplo, a névoa que cobre a tela no capítulo chamado “Dúvida”.

Stellan Skarsgard constrói um personagem honesto, apaixonado e divertido, transformando Jan em um sujeito impossível de não se afeiçoar. Preso a uma cama, o ator enfatiza a dificuldade em realizar qualquer movimento e, gradativamente, apaga o brilho de sua expressão facial.

Emily Watson oferece uma das performances mais delicadas e expressivas de todos os tempos. A doçura exposta em seu rosto na cena no cinema parece inatingível, sua dor é palpável e seu olhar para a câmera intensifica o apreço do espectador por ela. Desespero, bondade, melancolia e alegria se misturam perfeitamente. Na pele de Watson, Bess será eternamente lembrada como uma personagem única, a santa que não merecemos.

“Breaking The Waves” é uma obra prima, a tragédia romântica de Lars von Trier.

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