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“Anticristo” talvez seja o filme mais desafiador da controversa e brilhante carreira de Lars von Trier. Analisá-lo objetivamente é um verdadeiro desperdício, já que se trata de uma obra repleta de simbolismos, conceitos filosóficos e religiosos.

“Um estudo sobre o luto” é uma forma simplista de descrever “Anticristo”, que não dá nome aos seus personagens, um casal que acabou de perder seu filho. A primeira sequência é plasticamente extraordinária e trágica na mesma proporção. Em preto e branco e em câmera lenta, Ele e Ela transam, enquanto o bebê sai de seu berço, abre a janela e cai.

Psiquiatra, o marido adota uma postura racional e passiva, tratando sua esposa, que enfrenta uma dor descomunal, como uma paciente. O Homem se considera melhor que os demais, se intromete e é frio a ponto de irritar. A questão central não é exatamente o luto – obviamente também é -, mas a culpa atribuída por Ela, que falhou como mãe e Mulher. A criança depende do instinto protetor e amoroso de sua criadora. Em busca de respostas, Ele insiste em descobrir o que gera desconforto e medo na esposa, acredita que a única resposta para a dor é o enfrentamento. Eis que Ela diz: “a floresta”, especialmente o Éden, onde têm uma cabana. Assim como o Jardim habitado por Adão e Eva, o ambiente é vazio, o que reforça a alegoria religiosa proposta por von Trier. Atraente, belo e perigoso, o Éden foi o primeiro grande teste da humanidade, que, ao provar o fruto proibido, optou pelo mau. Se a mãe deixa de proteger, passa a ser uma figura “diabólica”, cuja existência se baseia no autoflagelamento e na agressão. “O chão está queimando”, diz Ela ao chegar no Éden, que assume conotações extremas e se adapta aos seres que ali estão. “A natureza é a Igreja de Satã”. A floresta é o seu purgatório, o local onde guarda as memórias mais traumáticas e vívidas de seu falecido filho. Se a Mulher veio ao mundo para ser um exemplo de proteção, zelo e cuidado, quando falha, o que sobra? Um sentimento que transcende a culpa e o luto. É simplesmente inviável seguir em frente, seu “descuido” é imperdoável e von Trier realiza um estudo pungente, que se inicia com o sofrimento e termina com a insanidade. Na Terra, a Mulher se encarrega de tarefas ingratas e solitárias. Ninguém é capaz de suportar tamanho fardo e o cineasta questiona a ordem imposta, que encaixa a Mulher em duas categorias: santa e monstro. Lars von Trier abusa dos simbolismos entre a natureza humana e a Natureza em si. A ave que devora seu bebê morto e as sementes de carvalho que desabam em terreno infértil infernizam Ela, que se vê rodeada de elementos que acentuam sua culpa. Se o Éden é adaptável, a natureza humana também é, podendo ser regenerativa ou destrutiva. Essa simbiose é ressaltada através do belíssimo trabalho de fotografia, que, através do uso de fumaça, névoa e tons frios, transforma a floresta num verdadeiro pesadelo. A Mulher é incapaz de se libertar das obrigações impostas previamente, de se perdoar, logo, tudo ao seu redor conversa com o seu interior – machucado, deteriorado e escuro. O auge de sua culpa enquanto mãe e representante do sexo feminino é triste e necessariamente gráfico: a personagem literalmente corta o seu clitóris, eliminando a fertilidade, a chance de recomeço, felicidade e de falhar novamente.

O sexo, inicialmente entre duas pessoas que se amam, assume a conotação de distração e de busca por um substituto, o que é subvertido na cena em que o Homem, em vez de esperma – vida -, libera sangue – morte – de seu pênis.

A enorme e firme árvore que desaba é uma metáfora para o fim do casamento e de uma família.

O psicanalista, “por acaso”, pode ser analisado pelos conceitos freudianos de ID, Ego e Superego. Seu jeito excessivamente cerebral, analítico e frio se contrapõe ao da esposa. Na floresta, Ele vê um cervo carregando o seu filho morto, esbanjando imponência e seriedade – o Ego. É a forma como o Homem se enxerga e é enxergado pela sociedade: o peso do fardo é proporcional a sua bravura.

Em contrapartida, ao vasculhar a Natureza, se depara com uma raposa se devorando, simbolizando a autocensura que o Homem impõe a si, proibido de demonstrar emoções – o Superego.

Após ser duramente golpeado e ter uma enorme roda presa em sua perna, Ele finalmente se esconde na toca da raposa, descrita como um lugar tranquilo e acolhedor. Dentro do “útero materno”, o Homem encontra o último elemento, o corvo, com quem luta brutalmente por sua vida – o ID. É justamente a ave que lhe fornece a ferramenta para tirar a roda da perna e seguir adiante, libertado das fortes amarras que o prendiam. Assim como o prólogo, o epílogo é em preto e branco, com a importante diferença da luminosidade despertar um otimismo inexistente no restante do filme. Ele caminha, se senta e se alimenta, mostrando o outro lado da Natureza, que pode ser bela e harmônica como a humana.

A direção de arte coloca o espectador em espaços claustrofóbicos, escuros e pessimistas. O design da cabana é sombrio e o sótão é um detalhe que engrandece a tortura psicológica enfrentada pelos personagens.

A trilha sonora é linda e aterradora, encapsula a tragédia perfeitamente e combina com as opções narrativas do cineasta.

Lars von Trier faz questão de tornar a experiência angustiante, traumática e efetiva. O uso constante de câmera na mão, os zooms, movimentos descoordenados, cortes abruptos e a insistência pela violência gráfica são marcas de sua longa trajetória e funcionam aqui. Lars von Trier não opta pela reação, foca na ação, utilizando, inclusive, incômodos planos-detalhe.

Charlotte Gainsbourg – que venceu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes -, e Willem Dafoe oferecem performances memoráveis, dignas de aplausos pela complexidade de seus personagens e pela total entrega – tenho certeza de que muitos atores dispensariam esses papéis.

Por mais ódio que o filme desperte, eu não posso fazer nada, a não ser afirmar que “Anticristo” é uma obra prima corajosa, difícil e original.

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