“Laranja Mecânica” foi a primeira experiência genuína que tive com uma obra importante. Mesmo sem entender muito bem os questionamentos propostos por Kubrick, saí com a convicção de que aquele era o meu filme favorito. Muitas coisas mudaram de lá para cá e essa minha certeza foi uma das poucas que se mantiveram intactas.
Alex Delarge é um personagem fascinante. Seu arco é complexo, assim como sua personalidade. Seus atos são repugnantes, mas estaria mentindo se dissesse que não torci para o seu bem durante os cento e quarenta minutos de duração. Em todos os textos até agora pontuei os desfechos memoráveis de Kubrick – esse também é -, no entanto, gostaria de enaltecer o primeiro plano do filme. O close up é revelador, o rosto de Alex é penetrante, não há como desviar o olhar, sua vitalidade é impressionante e a música eleva o momento. Kubrick realiza um zoom invertido, permitindo que o espectador entenda onde está. O protagonista e seus “drugues” passam os dias no “Korova Milk Bar”, no qual bebem leite com “velocet”, uma espécie de entorpecente. Os quatro se servem à vontade e se preparam para uma noite “horrorshow”, comandada pela boa e velha “ultraviolence”. O ‘’Nadsat”, idioma criado pelos “drugues”, revela mais do que podemos imaginar. Londres está em ruínas, as ruas estão vazias e caóticas, a lei e a ordem se confundem, dando espaço para os delinquentes. A anarquia está muito presente em “Laranja Mecânica”, os jovens se consideram os donos do pedaço e fazem o que bem entendem, sem medir as consequências nem demonstrar um pingo de empatia. Para enfatizar o sentimento de “terra de ninguém”, não há nada mais forte do que um idioma próprio. Os “drugues” só se comunicam entre si, o resto é visto como um alvo potencial, seja para roubo, seja para agressões, seja para estupro.
Alex representa tudo o que torna uma sociedade nefasta, contudo, seus gostos denotam uma surpreendente sofisticação que o difere de seus colegas. O protagonista se refere a Beethoven como Ludwig van e não consegue dormir sem escutar alguma de suas sinfonias. Tudo que envolve Alex Delarge é peculiar e interessante, no entanto, o carinho do espectador não seria possível sem o principal artifício utilizado por Kubrick: a narração. O protagonista nos trata como amigos, é educado e se coloca em posição de piedade. É impossível não se envolver com seu arco. O diretor nos faz duvidar de nós mesmos, afinal, não seria errado torcer para Alex? É uma escolha e o fato dela não ser óbvia a torna ainda mais humana. “Laranja Mecânica” discute esses princípios de maneira madura e complexa.
Alex, Pete, Georgie e Dim surgem nas sombras, que ressaltam suas posições de ameaça. Eles fazem de tudo, parecem unidos, mas não estão. O protagonista gosta de deixar claro que é o líder do grupo. Seus métodos e inquisições passam do ponto e os “drugues” decidem mexer na estrutura. Isso dura poucos minutos, já que, em uma das cenas mais marcantes do filme, Alex espanca Georgie e Dim, reassumindo seu papel de líder. Kubrick foi acusado de vangloriar a violência, o que é, no mínimo, um argumento absurdo. Seu filme vai muito além, entretanto, é inegável que este momento, por exemplo, esteja entre as melhores sequências dirigidas por Kubrick. A câmera lenta reforça o estado pensativo de Alex e, posteriormente, serve para elevar os chutes e bengaladas a status de arte. É como o balé das naves em “2001’’, só que com corpos caindo em um lago. O protagonista reassume sua liderança de forma significativa e, junto com seus “drugues”, planeja uma nova invasão. Na fuga, Alex é traído pelos colegas, que o apunhalam com uma garrafa de leite e o deixam no chão, à espera da polícia. Na prisão, ele demonstra esperteza e passa a bajular o pastor, lendo a bíblia e participando de palestras. A montagem deixa nítido que as únicas imagens que vem à cabeça do protagonista ao entrar em contato com o catolicismo são as de Jesus sendo crucificado, das guerras e das serventes dos imperadores, que ficavam peladas servindo uvas – ou seja, nada mudou, Alex é o mesmo. Ele descobre que existe uma forma mais rápida de sair da prisão, uma que visa a cura e a regeneração. O Prefeito, idealizador do tratamento Ludovico, não tem dúvidas e escolhe o detento mais infame e jovem para ser a cobaia. Se a primeira parte do filme serve como uma maravilhosa apresentação do ambiente proposto pelo diretor e as particularidades de Alex, a segunda é rica em questionamentos. O protagonista é submetido ao tratamento, que funciona da seguinte maneira: o paciente é drogado, colocado em uma sala para assistir filmes enquanto seus olhos são presos por grampos. Alex é forçado a ver imagens violentas, que remetem ao seu maior prazer, contudo, em vez de aproveitar, ele fica extremamente doente e incapaz de reagir. Melhor dizendo, o tratamento Ludovico não era uma cura, mas um crime. O que nos torna humanos é o direito de escolha e a solução para o fim da violência era transformar os delinquentes em fantoches – não há nada mais imoral que isso. Kubrick não dá soluções e coloca o espectador para pensar.
De violento e perigoso a uma vítima indefesa, esse é o arco de Alex, que sabe a diferença entre o certo e o errado e, mesmo assim, prefere a segunda opção. O terceiro ato poderia ser descrito como a vingança geral. Todos os personagens que foram atacados pelo protagonista o derrubam facilmente e o pobre coitado não consegue fazer nada. A relação distante com os pais talvez tenha influenciado a fomentar sua personalidade e indiferença perante os demais. Na verdade, não existe desculpa que justifique a maldade dentro de Alex, porém, o ponto principal é que essa característica não está restrita a ele. Todos que cruzam o seu caminho têm um caráter extremamente duvidoso e provam que também são violentos. As pessoas são vítimas e são malignas, os papéis às vezes se invertem, mas nunca desaparecem. O velho bêbado do início chora e fala sobre o mundo asqueroso que habita, todavia, quando tem a oportunidade de revidar, junta um grupo enorme para agredir e roubar Alex; Dim e Georgie nunca enganaram ninguém e a cena na floresta é, na minha opinião, a mais violenta do filme; o Prefeito é corrupto e vê em Alex a oportunidade de alavancar sua candidatura; o mesmo pode ser dito de Mr. Alexander, que, justamente, nutria um ódio profundo pelo protagonista, porém age com interesse antes de reconhecê-lo, provando ser também uma figura perigosa, que mais tarde apelaria para um ato de extrema covardia. Não que a punição tenha sido injusta, Alex é nosso protegido, nosso amigo, mas é um monstro. No futuro distópico de Kubrick, todos são…
A bondade não é algo que se impõe e “tirar” a maldade de um ser humano significa matá-lo, resumi-lo a nada, uma figura risível. Se o tratamento fosse adiante, a população inteira teria que passar por ele. A raça humana acabaria. Como alguém poderia sobreviver sem reagir a agressões? E a impulsividade? Alex seria devorado em dias e quase foi. Sua trajetória é tão perfeita e irônica, que toda vez que assisto “Laranja Mecânica” fico arrepiado e emocionado. “Home” deveria significar abrigo e acolhimento. Aqui não, Kubrick entende que essa palavra representa o medo, o desespero, a busca por algo. Se o figurino de Alex era elegante e imponente, seu roupão, no final, marcado pelo azul claro denota sua fragilidade. O mesmo pode ser dito sobre sua expressão facial, anteriormente, determinada e cativante, agora, amedrontada e extenuada.
No fim, podemos dizer que o tratamento é “oficialmente” um desastre. Absolutamente nada funciona e a corrupção do Prefeito acaba premiando Alex, cujo desfecho é perturbador e satisfatório. Ele estava realmente curado…
“Laranja Mecânica” é um filme assustadoramente estiloso. Os figurinos são, provavelmente, o maior destaque, no entanto, tudo que envolve os “drugues” chama atenção. A casa do protagonista é colorida e os móveis são modernos; os cabelos das mulheres têm cores fortes e, instantaneamente, remetem ao futurismo; assim como a loja de discos, cuja estética é um tanto psicodélica, e o Korova Milk Bar. O design de produção é fascinante por conseguir unir tendências futurísticas através do uso de cores e objetos específicos com a morbidez londrina. Vale ressaltar também a presença da cor vermelha desde os créditos iniciais, que tem a óbvia conotação de violência. A fotografia aposta em tons acinzentados e o uso de sombras para salientar o perigo é impecável. A forte luz em direção a Alex na sequência em que ele apresenta o resultado do tratamento é importante – um número de circo.
A linguagem adotada por Kubrick é inovadora. Suas movimentações de câmera nas cenas de agressão realçam o estado caótico da mente dos personagens e são fundamentais para perturbar o espectador; adoro a forma como ele acelera o tempo quando Alex transa com duas garotas, ressaltando que aquilo não significa nada para o protagonista; seus planos-detalhe sempre indicam sutilmente o que irá acontecer em breve, denotando uma rara delicadeza. A montagem ajuda a destrinchar a mente doentia de Alex e a trilha sonora a base de Ludwig van é espetacular. Eu nunca pensei que Beethoven combinaria tanto com violência e poderia elevá-la ao status de arte. Gostaria também de deixar claro que “Laranja Mecânica” é um filme com ótimos momentos de comicidade. O roteiro é inteligentíssimo e adora pegar o espectador desprevenido.
O que falar sobre a interpretação de Malcolm McDowell? O ator conquista o espectador no primeiro olhar. Seu personagem comete atrocidades, mas ele consegue, através de um fabuloso trabalho vocal, nos colocar ao seu lado. Seu arco é significativo, Alex atinge extremos e McDowell está lá para representá-los.
De certa forma, o Set Por Sete só existe por causa de “Laranja Mecânica”.
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