Poeta, profeta, marginal, astro, mártir do Rock ‘n’ Roll e cristão renascido. Essas são as seis facetas de Bob Dylan exploradas pelo diretor Todd Haynes. O mais fascinante em “I’m Not There” é a forma como todas as passagens conversam entre si, ainda que mantenham certas singularidades.
Bob Dylan é possivelmente o maior compositor de todos os tempos, mas não é exatamente esse o caminho trilhado pelo roteiro, que enfatiza a complexidade e a natureza errante do músico.
Os “personagens” têm nomes distintos. Jack representa a fase inicial de Dylan, quando encantou o povo americano com suas palavras poderosas, que refletiam os anseios das pessoas. Ele era um rebelde, um ativista, a voz de uma nação à flor da pele. O início da Guerra do Vietnam e outros acontecimentos históricos o levaram a uma triste conclusão: sua música não seria capaz de mudar o mundo. O Folk era uma força transformadora ou uma forma artística? As multidões não viam Dylan como um músico, mas como um profeta, um jovem que os guiaria a dias melhores e um futuro próspero.
Ninguém merece esse rótulo e o protagonista, por mais genial que fosse, percebe que é apenas um compositor acima da média, que escreve sobre aquilo que sabe, que atormenta sua mente e seu coração. O sumiço de Jack, que reaparece na sua fase religiosa, é uma das diversas formas que Dylan encontrou para seguir em frente e esquecer um pouco os holofotes.
Jude é a “evolução” natural de Jack, uma resposta a algo que já estava saindo do controle. A mudança do violão para a guitarra elétrica foi, simultaneamente, um desabafo e uma mera curiosidade artística. Dylan foi chamado de traidor e se tornou cada vez mais impaciente com as pouco inspiradas perguntas dos jornalistas, que o pressionavam diariamente. A música pode até ser um protesto, no entanto, antes de qualquer coisa, é a melhor maneira de limpar a consciência.
“Quem se importa com o que penso? Não sou o Presidente. Sou apenas um contador de histórias”.
Eu não tenho dúvidas de que Dylan se preocupava com questões políticas e sociais, contudo, nunca almejou o posto a que o alçaram. No fundo, era só um cara que tinha facilidade em dizer o que as pessoas não conseguiam. Repórteres pretendem desmantelar o significado de suas letras e os fãs deixam de ser fãs ao transformarem um músico numa espécie de Deus, que não pode sair de uma linha tênue, nem tem o direito de admitir suas fragilidades humanas. Constantemente mal interpretado e atacado por jornalistas, Jude se entope de drogas, não por desejá-las, mas por vê-las como uma forma efetiva de fuga. Ser extraordinário significa ser solitário e tenho certeza de que esse filme mudará completamente a visão daqueles que enxergam em Dylan um sujeito arrogante e distante. Sua vida era um verdadeiro campo minado. Suas entrevistas e frases icônicas eram a única forma de se defender, de colocar seus “inimigos” numa zona de desconforto, afinal, apesar das manchetes sensacionalistas, Dylan os desmontava rapidamente.
A grande questão deixada por Jude e que me parece justíssima é: vale a pena criar? O preço é altíssimo e não é qualquer um que consegue se sustentar a longo prazo.
Robbie, a princípio, remete ao Dylan “popstar”, no entanto, quanto mais entramos em contato com o personagem, percebemos que ele é o “homem” dentro do artista. Um astro sensível e apaixonado, que vive momentos de rara beleza, mas que não consegue manter o estilo de vida desejado por muito tempo. Ele é inseguro, vive num meio em que certos comportamentos são vistos e tratados como uma obrigação e cai em armadilhas das quais se arrepende profundamente. A sequência na qual Robbie e Claire se amam ao som de “I Want You” representa exatamente o que o ele queria para o restante de sua vida. Para quem não sabe, Dylan se aventurou na sétima arte e Haynes faz alusão a alguns de seus filmes. O ator interpreta um personagem constantemente e Robbie, por mais que viva como uma estrela, é um homem de gostos simples e humanos. Ele é um lobo solitário, sua voz no desfecho enfatiza essa condição, assim como o seu olhar melancólico para os filhos e a ex mulher.
Billy é um fazendeiro. Vive cercado por uma bela e tranquila paisagem que se opõe a tudo que Dylan havia experienciado até então. Entretanto, como de costume, este não é qualquer personagem, é o célebre fora da lei, Billy The Kid. Sereno, sua única companhia é sua cadela, que foge regularmente. A escolha de Haynes é certeira, justamente por juntar todas as facetas em uma só e fechar o arco de Dylan com perfeição. Billy não vive ali para arrumar confusão, pelo contrário, quer paz e aceita o silêncio e a solidão. Em contrapartida, ele é um “temido” fora da lei, que sempre acaba sendo a principal voz no vilarejo onde vive. Dylan foi considerado um prostituto por “trair” o Folk, uma farsa por negar sua influência na sociedade contemporânea, foi perseguido e queria apenas cantar suas músicas, sem segundas intenções. Billy diz que a vida é um enorme julgamento e que o seu prolongamento vai na contramão da liberdade. “Não sei quem eu sou”.
Woody – o nome não é uma coincidência, Guthrie foi uma das maiores influências de Dylan – é um garoto apaixonado por música Folk e extremamente talentoso. Suas canções são sobre questões que não entende. Seu arco é sobre conhecimento, descobrir a própria voz e, mesmo passado por situações difíceis, é facilmente o Dylan mais ingênuo e sonhador.
Por último, temos Arthur, o poeta, que nunca sai de sua cadeira e encapsula todas as facetas do cantor.
“I’m Not There” impressiona pela narrativa criativa. A montagem não tem compromisso algum com a cronologia, passeando entre as personas de acordo com o que a trama pede. Dessa forma, o retrato se torna ainda mais complexo e contundente. Dylan realmente não estava lá, nunca esteve. Não à toa, ao encontrar Woody, Billy não o reconhece – ou prefere ignorá-lo.
A escolha por flashbacks para contar a história de Robbie e Claire se prova acertada, apontando para as principais diferenças entre o homem do início e o do desfecho.
A abordagem documental, principalmente nas cenas envolvendo Jack, engrandece o nível da obra, que se leva a sério e, diferentemente da maioria das biografias, explora ao máximo a linguagem cinematográfica. As falsas imagens de arquivo e entrevistas captam a essência de Dylan e ajudam na fluidez do filme, que nunca fica engessado.
A fotografia é excepcional, variando entre cores com inteligência. O preto e branco confere uma nostalgia aos segmentos de Jack e Jude, além de ser essencial para o tom documental – a imagem granulada também merece destaque – e conversar com o esgotamento físico e mental dos personagens. Robbie vive em um mundo azulado, triste e solitário. O curioso é que, tirando a já citada sequência em que toca “I Want You” – marcada por belas paisagens e cores vivas – e outras pontuais, ele praticamente não abandona esse tom adoecido, até mesmo quando conhece a esposa – um indício de sua personalidade, melhor dizendo, de sua realidade. Os campos de Billy cabem brilhantemente na narrativa, dando uma falsa ideia de liberdade, exposta através da predominância do cinza. Os tons que acompanham Woody ressaltam a simplicidade de sua vida.
A direção de arte também é interessantíssima. Na casa de Claire, as cores mais presentes são o amarelo e o rosa, contrastando com a realidade de Robbie – uma influência positiva em sua vida. As fotos e os álbuns que ele guarda em seu armário são lembranças dolorosas de uma fantasia, uma mera ilusão. As casas, de modo geral, seguem um padrão na arquitetura e chamam a atenção pela presença de tons pastéis.
Todd Haynes confecciona um estudo intrigante, rico e complexo sobre uma das figuras mais fascinantes da história. Ele sabia que uma narrativa convencional não faria jus a Dylan e, logo de cara, inicia o filme com um longo plano subjetivo, que mitifica a imagem do ídolo/traidor.
Sua condução é vistosa e hipnótica, mantendo o espectador sempre atento ao seu “próximo passo”. Seu travelling que apresenta uma legião de fãs desesperançosos e o plano que emula o atordoamento de Jude após uma “leve overdose” são pontos altos de sua direção. Sinceramente, não há nada a se criticar, só consigo elogiar Haynes, cujo cuidado com os enquadramentos é precioso. A referência a 8 1/2, de Federico Fellini, não poderia passar despercebida – nem o belíssimo desfecho.
Heath Ledger oferece uma performance excelente como Robbie, um homem contraditório e conturbado, que odeia o que faz e ama o que deixou escapar. A mudança na entonação é a grande marca em sua caracterização, gradativamente retraída, na medida em que sua situação se deteriora.
De qualquer forma, Cate Blanchett é o principal destaque do filme. Sua interpretação é magnífica. Poucas vezes me perdi dentro de um personagem, sem conseguir diferenciar o ator (atriz no caso) e a pessoa real. Claro, a maquiagem ajuda bastante, no entanto, assim como fez em “O Aviador”, onde deu vida a Katherine Hepburn, Blanchett demonstra uma rara facilidade para criar seus próprios maneirismos, aliando fragilidade, charme, sarcasmo e raiva, sem soar caricata ou enfadonha. Sua faceta é, sem dúvida alguma, a mais interessante, e a atriz dá conta do papel com maestria.
“I’m Not There” é uma obra prima inventiva e inimitável, que se arrisca e acerta em cheio. É difícil de acreditar, mas, sim, todos são a mesma pessoa, todos são Bob Dylan, estando ele lá ou não.
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