Em 1968, Stanley Kubrick revolucionou a arte. Eu nem precisava escrever esse texto, não há nada que já não tenha sido dito sobre “2001: A Space Odyssey”, o filme mais importante da história do cinema.
A tela está preta, não há nada a se observar, se passaram uns vinte segundos e já é possível sentir algo diferente. Então surge o espaço, o sol no fundo é belíssimo e “Also sprach Zarathustra” – poema sinfônico de Richard Strauss – anuncia o tom épico da experiência.
Os primeiros diálogos aparecem com quase trinta minutos de filme e, sinceramente, nem eram necessários. As imagens têm algo a dizer, a trilha sonora e o silêncio também, absolutamente tudo disponível em tela tem um propósito e foi milimetricamente inserido. Há quem diga que o ritmo é arrastado e que Kubrick abusa da auto indulgência. Por qual motivo uma sequência de naves caminhando em direção a estação espacial dura tanto? O cinema nunca produziu algo tão belo, poético e significativo. Elas passeiam pelo espaço ao som de “The Blue Danube”. A sincronia é perfeita, cada movimento parece ensaiado, a valsa é absolutamente deslumbrante. A cena poderia ficar apenas no aspecto da beleza, mas Kubrick vai além. Após o contato com o monólito, os macacos se tornam seres mais inteligentes e evoluídos, que utilizam ferramentas para se alimentar e demonstrar imponência. O líder joga o osso para cima que, no fim da parábola, se transforma em uma bomba nuclear orbitando o planeta Terra, no que é considerado, até hoje, a elipse mais expressiva da história do cinema. O ser humano evoluiu, suas armas ficaram mais sofisticadas e seu domínio chegou ao espaço. A escolha da música é espetacular em todos os sentidos. Se nos primórdios tudo que escutávamos eram gritos, no presente temos acesso a algo como “The Blue Danube”, que reforça a sensibilidade do homem e os rastros de arte neste período de evolução. Eu poderia fazer um texto somente sobre essa sequência, tudo que a cerca é genial.
O tom adotado pelo diretor faz toda a diferença. Seus planos não são curtos e visam a total apreciação de um universo riquíssimo. Kubrick se coloca no lugar daqueles que viviam no espaço e não tem pressa, afinal, cada passo dentro de uma nave demandava tempo. A caneta flutua, assim como a comida, e as pessoas andam de cabeça para baixo. Kubrick construiu um cenário giratório enorme que simulava a gravidade zero. Tudo tinha que ser mais que convincente, Kubrick queria entrar para a história e conseguiu. Ele mudou o conceito da ficção científica, que se baseava em monstros gigantes e a levou para uma discussão filosófica sobre o ser humano. As naves espaciais eram circulares e cartunescas, já as suas, foram pensadas junto à Nasa, que emprestou protótipos modernos para o diretor. O design de produção desse filme é algo a ser estudado, nem os projetos atuais chegam perto da autenticidade alcançada por Kubrick. Em Star Wars, por exemplo, os personagens circulavam pelas naves como se estivessem em casa. “2001” explora cada movimento, cada garfada, qualquer dificuldade imposta pela gravidade e a utiliza como elemento relevante para o tom. Poucas obras conseguem ser, simultaneamente, contemplativas e ágeis. Mesmo que você não entenda nada do que está vendo, irá se deliciar com a ópera espacial e todo o cuidado de um realizador perfeccionista. Kubrick era um visionário. A ligação de vídeo de um dos cientistas se parece muito com o Skype e a relação entre máquina e ser humano é assustadoramente atual. Assim como nós, os personagens acreditam que estão no comando e descobrem, da pior maneira, que isso não é verdade.
O design de som é primoroso. A trilha é evocativa, mas o que falar do silêncio ensurdecedor que domina o espaço? A tensão não está nas atuações, a montagem é ótima, no entanto, é a falta de som que nos deixa na ponta da cadeira. Não há mais ninguém ali, apenas alguns homens dentro de uma nave, presos a uma vastidão claustrofóbica. A fuga não é uma opção e quando um deles tem que reparar algo fora da nave, tirando a beleza, a única coisa que sentimos é o medo pelo desconhecido. Não há nada mais misterioso que o silêncio e Kubrick o eleva a vigésima potência. Seria fácil ignorar certos momentos e apelar para estrondos, mas ele sempre subverte a expectativa do espectador, que se vê imerso de uma forma inesperada.
Os efeitos especiais são icônicos e ajudaram a formar cineastas como George Lucas, Steven Spielberg e Robert Zemeckis. Eu não tenho a menor dúvida de que Kubrick gastou o que não tinha para chegar àquele perfeccionismo, entretanto, seus esforços provam que a modernidade não pode comprar tudo. O lendário Douglas Trumbull trabalhou ao seu lado e foi quem teve, provavelmente, o maior insight. Os feixes de luz que aparecem no terceiro ato foram possíveis graças ao uso da “slit can” – processo de registro de imagem com slide móvel – e as cores do infinito que David Bowman adentra foram captadas a partir de filtros negativos.
O monólito é o objeto chave para o entendimento de “2001”. Os macacos se agitam ao vê-lo e tocam nele com encantamento. Eles evoluem, se tornam humanos e o mesmo ocorre quando um grupo de exploradores se depara com o monólito. A trilha é idêntica, o misto entre admiração e estranhamento reaparece e o resultado é similar. O objeto não foi desenvolvido por seres humanos e, pelo que tudo indica, representa um passo para a evolução a uma espécie superior. Os macacos seguiram o ciclo, no entanto, os cientistas ainda não parecem prontos. Assim como a música, Kubrick utiliza o mesmo contra-plongée para reforçar a importância do monólito. Mais um tempo se passa e o foco muda para os verdadeiros protagonistas da história. David Bowman e Frank Poole estão a bordo da nave Discovery One e têm como grande parceiro o computador HAL 9000. O que mais chama a atenção é a personalidade dos indivíduos. Cada vez mais em contato com máquinas, os cientistas, solitários, agem friamente. Peguem, por exemplo, a cena em que Poole recebe uma mensagem de parabéns de seus familiares. Sua reação é completamente inexpressiva. Em contrapartida, HAL 9000, invariavelmente taxado de forma injusta como o vilão do filme, é emotivo e age da forma mais humana possível. Ele é gentil, gosta de conversar e chora quando percebe que está próximo do fim. HAL é tido como infalível, mas erra e não tem uma segunda chance. Em estado de desespero, ele tenta se salvar e se desfaz da maioria dos cientistas. Kubrick trata essas mortes com descaso e distância, sua câmera se afasta e, em vez de empatia, sentimos indiferença. O diretor faz com que o espectador se afeiçoe pelo computador através de planos subjetivos e fechados. A tensão é muito bem construída nesse núcleo, tendo como ápice a morte de Poole, que é, simultaneamente, minimalista e grandiosa. Já a cena em que Bowman desliga HAL, é a mais triste do filme, pois, diferentemente dos cientistas, ele implora por piedade. Kubrick enxerga os humanos como seres cuja evolução foi danosa. A relação com as máquinas trouxe um alarmante grau de dependência e acarretou uma troca de papéis. Não há como se identificar com os exploradores, eles não agem como nós, não riem, não brincam, nem demonstram um mínimo senso de urgência. Esse é HAL e é por isso que percebemos que a raça humana se tornou obsoleta.
Bowman parte em direção ao infinito e adentra um novo território. O uso de freeze frames conversa diretamente com os inovadores efeitos especiais de Trumbull, salientando o êxito da viagem. Seu quarto é perfeitamente branco, repleto de objetos luxuosos. Ele envelhece rapidamente, passa o resto da vida ali e se transforma em um bebê. O monólito está a sua frente, Bowman o toca antes de completar o ciclo. O personagem fez o que os cientistas do início haviam tentado. Ele provavelmente permaneceu naquele quarto como um animal enjaulado para o prazer da espécie superior, até ir ao encontro do objeto que abre e fecha a história. Como disse, o monólito representa a evolução e o grande bebê celestial que flutua em direção a terra é a esperança de uma raça que se deteriorou com o tempo. Bowman se tornou a espécie superior. Kubrick termina sua obra prima de uma forma surpreendentemente otimista.
“2001: A Space Odyssey” é a maior experiência que um cinéfilo pode ter. Uma viagem sensorial, filosófica e épica.
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