“Zodiac” não começa com um plano subjetivo à toa, é um dos filmes mais sugestivos e misteriosos que já assisti.
Diferentemente da maioria dos roteiros com os quais trabalha, David Fincher foge de reviravoltas, seguindo uma trama “tradicional”, focando no trabalho investigativo de detetives e jornalistas, especificamente, em três personagens. Eles são, de certa forma, a alma da obra, justamente por se envolverem profundamente no caso do infame e “desconhecido” serial killer autointitulado “Zodiac”, e sofrerem as consequências da interminável e exaustiva investigação.
Paul Avery trabalha no jornal Chronicle, de San Francisco. Apresentado como um sujeito carismático, engraçado e egocêntrico, que chega a tomar as rédeas do caso pensando não apenas na resolução, mas na própria promoção, ele é o primeiro a desmoronar. Cigarros e álcool eram costumeiros, porém se tornam obrigatórios; sua aparência se deteriora com o tempo, iniciando com um desleixo, partindo para uma velhice precoce, terminando quase imóvel – resultado de seus excessos e da gradativa agonia.
David Toschi é um detetive talentoso. A princípio bem-humorado, o personagem entra de cabeça no caso, correndo atrás de pistas e possíveis suspeitos. É possível notar uma crescente ansiedade em seus gestos e ações. Ele se distancia da esposa e sabe que não deveria. É como se sua mente o obrigasse a seguir tentando. Quando David e sua equipe finalmente chegam a Leigh que, além de ter um passado conturbado, bate com as descrições, no fundo, torcemos para que ele seja o “Zodiac” para finalmente libertar o detetive e os demais envolvidos. Mas não, sua caligrafia não é igual a do assassino que enviava cartas para o jornal. Desorientado e frustrado, David vê o seu parceiro pedir transferência, optar por uma vida tranquila e o inveja, porque sabe que não consegue fazer o mesmo. Sozinho, ele segue em sua busca, até que o caso se torna “antigo demais”, afinal, centenas de novos homicídios precisavam ser resolvidos. David não dorme bem sabendo que abandonou o “Zodiac” e, invariavelmente, é puxado de volta pelo terceiro personagem.
Robert Graysmith é o cartunista do Chronicle, no entanto, desde o início, demonstra um enorme fascínio pela história, mesmo sendo ignorado pelos colegas e considerado um ser “inferior” dentro do jornal. Ele ajuda Paul a avançar nas descobertas. Por muito tempo, Robert é um observador atento, todavia, quando percebe que o caso foi deixado de lado, decide fazer sua própria investigação – enquanto escreve um livro sobre o assassino. Ele é um pai/marido carinhoso e o seu arco é, sem dúvida alguma, o mais radical. Assim como David, o cartunista se vê tomado por uma força maior e estuda a fundo cada detalhe dos relatórios. A fama o leva a pessoas que sabem de algo revelador, no entanto, e a sua trajetória se baseia basicamente nisso, os mais experientes e especializados na área sempre o brecam com notícias pessimistas. Não por terem esquecido o “Zodiac”, por julgarem ter a propriedade de discernimento entre o que é concreto e o que é mera especulação. Robert entra num interminável ciclo de pistas e decepções, que o levam não só a um completo afastamento dos entes queridos, mas a uma agitação crônica que, inconscientemente, também o faz perder boa parte da sensibilidade que tinha.
Muito se questiona no filme se o “Zodiac” foi realmente um assassino em série ou um maluco que assumia crimes para chamar a atenção. Sabemos a resposta para esse dilema, o que pouco importa, já que o grande ponto levantado pelo roteiro é a obsessão que controla as mentes e os corpos desses três homens, que se autodestroem física e psicologicamente, afastando-se da verdade e do que consideravam essencial antes de conhecerem o tal maníaco. O “Zodiac” nunca toca neles, no entanto, podemos dizer que acabou com boa parte de suas vidas, absorvendo anos preciosos e mantendo a dúvida eterna – sensação de impotência. Não é uma questão sobre até quando vale a pena seguir investigando, pois, como mencionei, eles até gostariam de parar – simplesmente não conseguem. O detetive e os jornalistas não têm culpa, a discussão é maior e ainda mais pessimista: existe um limite para a maldade humana? Claro que não, e ela afeta uma gama imensa de pessoas. Essa é a força do roteiro escrito por James Vanderbilt.
A montagem é a principal engrenagem do filme, servindo para potencializar o suspense; salientar as inúmeras passagens temporais, fundamentais para expor o peso, a dor e a obsessão dos personagens, que sofrem mudanças físicas; reforçar o dinamismo e o incessante trabalho dos envolvidos, através de cortes frenéticos e constantes, podendo se passar no mesmo espaço ou levar os personagens para lugares opostos aos que estavam segundo antes.
A direção de arte é importante na caracterização do trio principal. Paul se muda para um barco zoneado, que ressalta a sua reclusão, seu atordoamento após se afastar do jornalismo e sua péssima condição física.
Se Robert era o “jovem perfeito”, meticuloso até na higiene dos filhos, no decorrer da trama, sua residência se transforma em uma biblioteca, amontoada de livros e papéis, além de ficar vazia – todos se vão. Ele aparece constantemente molhado, o que diz muito sobre a investigação particular – nunca está em casa, sempre nas ruas.
O trailer no qual Leigh vive é caótico, sujo, claustrofóbico e repleto de armas. As paredes da sala em que ele é interrogado são verdes, aumentando as suspeitas.
A sede do jornal, quando apresentada, parece espaçosa, entretanto, gradativamente, se torna menor e desconfortável. Fincher coloca mais pessoas no ambiente para ratificar a ideia de algo grandioso e extenuante.
A fotografia merece elogios por balancear muito bem as tonalidades, variando entre a ensolarada San Francisco e a frieza que conversa com a natureza da trama e do arco dos personagens. Claro, há uma leve e gradativa mudança na tonalidade ao longo do filme, mais evidente na casa de Robert, que perde as cores. O amarelo assume uma conotação simbólica, marcando a presença “invisível” do serial killer e realçando o efeito dele sobre os investigadores.
De qualquer forma, o que mais chamou a minha atenção foi o cuidado dos realizadores para não mostrarem o “Zodiac”, dando ao espectador pistas sutis de sua estrutura física. A escuridão, o foco exclusivo na possível vitima e o forte feixe de luz – utilizado no início – se complementam brilhantemente.
Fincher se prova, mais uma vez, um cineasta corajoso, que usa a violência gráfica como um importante elemento narrativo – não que o filme seja repleto de sequências violentas, a brutalidade é sugestiva, porém existem alguns momentos mais intensos. Sua estrutura é inteligente, varia entre a investigação, o estudo dos personagens – diferentes focos – e os passos do “Zodiac”. As sequências de assassinato são impressionantemente tensas. Fincher as alonga ao máximo e o espectador apenas espera quando e como aquelas pessoas irão morrer. Ele “manipula” o nosso olhar na cena em que Leigh é interrogado, desde a cuidadosa mise en scéne aos close ups e planos-detalhe insinuantes. O relógio parecia a prova definitiva, mas…
Poucas vezes um diretor captou uma sensação de pavor tão palpável como na sequência em que Robert entra em um galpão. A reação do cartunista, a posição do outro personagem no quadro, o design de som, o ambiente e a situação em si são suficientemente aterrorizantes.
Robert Downey Jr. e Mark Ruffalo estão excelentes em seus papéis – Paul Avery e David Toschi, respectivamente -, iniciando como figuras experientes e seguras que, gradativamente, demonstram inseguranças e medos que desconheciam, resultando em trejeitos específicos, como, por exemplo, a fala acelerada, uma fome avassaladora – não param nem para comer – e tremedeiras nas mãos.
Jake Gyllenhaal é inegavelmente quem mais aparece e seu personagem é o mais complexo dos três. O ator capta de maneira exemplar a essência do jovem dedicado, mantendo uma entonação vocal sóbria e uma feição ingênua. Quanto mais se envolve na investigação, mais se distancia da família e começa a falar demasiadamente rápido. Ele concilia, ao mesmo tempo, concentração absoluta e dispersão, o que é incrível, ressaltando a sua existência apenas em seu próprio universo. Sua ingenuidade é travada pela experiência e, no fim, Robert está mais “esperto” e drenado.
“Zodiac” é um suspense feito para adultos. Uma obra prima perturbadora que “aprecia” o trabalho devastador e desumano de detetives e jornalistas investigativos.
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