“The Banshees Of Inisherin” é um filme com uma trama relativamente simples, que explora temas complexos sobre a natureza humana e deixa o espectador sem chão, impactado com um conto absolutamente devastador.
Pádriac é um sujeito simpático, que anda sempre de bem com a vida, até o momento em que seu melhor amigo, Colm, decide que não quer mais escutar sua voz. A princípio, pensamos que o protagonista fez algo de errado, mas não, Colm chegou à conclusão de que o considera um homem chato, que não tem nada a acrescentar em sua curta vida e que atrapalha o seu processo artístico.
As coisas são ditas com uma frieza que machuca e vai, gradativamente, moendo a alegria do ingênuo Pádriac, que passa o filme praticamente inteiro tentando achar alguma forma de consertar a situação e abraçar o seu velho amigo novamente. A irritação de Colm com as constantes investidas do protagonista o levam a tomar uma medida drástica: a cada palavra de Pádriac direcionada a ele, um dedo seu seria cortado.
É uma atitude que dá um tom meio absurdo ao filme e que expõe com clareza o que se passa na mente de Colm.
Sua indelicadeza é um sintoma de sua honestidade, e a automutilação, de sua constante preocupação com o tempo, com a morte e com a sua relevância. Sua condição denota uma tristeza adormecida, que parece já ter apodrecido em seu peito. Sem os dedos, Colm não consegue tocar violino – seu único objeto de prazer. O personagem não pensa no agora, em pequenos momentos, seu objetivo é viver em paz e construir um legado a partir de sua música – algo que ele sabe que não acontecerá. Essa é a grande tragédia por trás de Colm, que está ocupado demais imaginando o que vão pensar dele daqui a vários anos, deixando de lado a vida que lhe resta.
Colm pensa tanto no fim das coisas, que antecipa o seu.
O roteiro deixa nítido que ele não é um monstro, apenas um homem em uma terrível crise existencial. Alguns de seus gestos ressaltam a antiga sensibilidade e generosidade, pena que são rápidos e deixaram de ter um significado.
Suas ações levam a falência emocional de um sujeito cujo grande valor era o ânimo. Esse é um dos grandes embates entre o calor humano e a frieza que o cinema já nos apresentou. Diferentemente de Colm, Pádriac acredita que a simpatia é o principal legado de uma pessoa, citando sua mãe e seu pai, provando que, além de puro e limitado, via a vida como um conjunto, um punhado de dias nos quais seu jeito pode afetar significativamente o estado de espírito de alguém. Talvez ele não conheça Mozart, beba demasiadamente e não tenha a capacidade de falar sobre um assunto minimamente interessante, contudo, Pádriac é um amigo leal, preocupado, alegre e honesto. Para alguns, a solidão é uma benção, para outros é um terror e o choro do protagonista ao se deparar com seu atual vazio é devastador. Seu único parceiro é um burro chamado Jenny, que entra em sua casa como um cão e escuta tudo o que ele tem a dizer. Não é como se o protagonista tivesse muitas opções, além de Colm, tinha sua irmã e Dominic, um jovem encrenqueiro. Passado em uma pequena ilha na Irlanda, cercada por uma Guerra Civil, “The Banshees Of Inisherin” é um filme movido por personagens cheios de dores e problemas.
Por ser solteira, Siobhán é constantemente humilhada pelos homens e vive um duro conflito interno, tendo que lidar com os anseios de seguir seus sonhos e ter que cuidar de seu solitário irmão.
Dominic vaga pelos campos dizendo besteiras, quase sempre com hematomas gerados pelo pai, que também o molesta. Ele é irritante, inconveniente e desconhece parte das convenções sociais, entretanto, traz uma leveza cômica à trama e é honesto quando pergunta se Siobhán aceitaria sua companhia.
O arco de Pádriac o leva ao fundo do poço, perdendo todos que amava e sua essência, tornando-se um homem rancoroso, vingativo e desesperado por afeto. Ainda assim, o protagonista esbanja humanidade, agindo apenas como qualquer pessoa reagiria em sua conturbada e inusitada situação.
Muito se fala do toque refinado de humor nos filmes de Martin McDonagh e de fato existem alguns detalhes que enriquecem o tom de sua obra, principalmente o fato dela se passar em uma ilha onde todos sabem tudo o que acontece e o timing de certos diálogos. Mas de um modo geral, este é um drama pesado e sofisticado sobre seres humanos completamente diferentes que um dia se consideraram melhores amigos. Pode ser visto como o embate entre presente e futuro; pureza e frieza; alegria e tristeza; ingenuidade e arte; o “descompromissado” e o “cerebral”; o “agora” e o “efêmero”.
O roteiro permite que enxerguemos muitas coisas, descreve personagens riquíssimos e entrega ao espectador uma experiência única e dolorosa.
A direção de arte explora a simplicidade da ilha. As casas são pequenas e se parecem, mas percebam: enquanto a de Pádriac possui um interior mais rústico, a de Colm é recheada de máscaras, instrumentos musicais e quadros.
A fotografia varia entre cores fortes, que exaltam as belas paisagens e tons azulados e cinzentos, que conversam com a trajetória melancólica dos personagens. Destacaria o momento em que Siobhán sai da ilha e, em seu caminho, se depara com uma luz radiante – esperança. As casas recebem apenas iluminação natural pelas janelas, sendo núcleos de isolamento e solidão.
A trilha sonora é belíssima, regendo a trama com melodias tristes e suaves.
Martin McDonagh tira proveito da paisagem com planos gerais elegantes, no entanto, o que mais chama a atenção em sua direção é a mise en scéne, capaz de criar uma tensão crescente entre os personagens, através de suas posições dentro do quadro. Normalmente, Colm parece mais imponente ou está caminhando para frente, enquanto Pádriac está quase sempre cabisbaixo e olhando para trás. Sua composição de quadros é fascinante e o último, em que uma personagem “mística” separa os antigos amigos é, ao mesmo tempo, lindo e simbólico.
Barry Keoghan prova novamente que é um dos atores mais talentosos da atualidade. Tudo em sua performance é perfeitamente calculado, sem soar forçado, desde a entonação, as pausas e os gestos corporais. Ele é o principal alívio cômico e também impressiona pela sensibilidade que tem ao expor sentimentos doloridos.
Brendan Gleeson interpreta um personagem complexo e difícil de se afeiçoar. Ainda assim, o ator consegue torná-lo uma figura fascinante de se decifrar. Suas atitudes “absurdas” são levadas a sério graças ao seu controle emocional.
Colin Farrell talvez tenha atingido o ápice de sua carreira. Desde o primeiro segundo, sua presença é marcante e radiante. Sua caracterização parte não só da entonação, mas de pequenas alterações vocais, olhares magoados e na forma de andar. O ator caminha dentro do arco de forma brilhante e oferece a performance mais bonita e arrebatadora do ano.
A princípio simples, “The Banshees Of Inisherin” é um filme complexo, original e belo em todas as suas esferas. Sem dúvida alguma, um dos melhores de 2022.
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