“Taxi Driver” simboliza o cinema americano setentista. Uma obra crua, inesgotável e autoral.
Insone, Travis Bickle decide dirigir um táxi pela madrugada em Nova Iorque, indo dos lugares mais “nobres” aos mais caóticos. Pouco importa, a cidade era um verdadeiro antro da violência.
O protagonista é um veterano da Guerra do Vietnam e, como a grande maioria dos que lá estiveram, se sente abandonado e deslocado.
A dificuldade em encontrar empregos machuca, mas não tanto quanto ver negros e homossexuais circulando normalmente. O país passava por uma mudança radical, as minorias começaram a ter voz e a dividir espaço com os demais. Travis é um homem preconceituoso e o seu ódio se torna maior, aflorando os seus traços de sociopatia ao constatar o seu declínio e o avanço daqueles que despreza.
A sua repulsa pela sociedade contrasta com o seu desejo de ser humano e ter uma vida normal. Betsy trabalha na campanha de um candidato à presidência e surge para Travis de branco, como um anjo – Scorsese usa a câmera lenta para enfatizar a perspectiva do protagonista.
O nervosismo e a coragem de Travis são dignos de um sujeito que quer mudar, se envolver com alguém. Os dois estão de vermelho – espelhando talvez alguma conexão – e ao se dirigir à Betsy, o taxista reflete sobre o cotidiano e a solidão da moça. Um discurso claramente ensaiado que, na verdade, descreve a sua realidade, afinal, ainda que não inteiramente, a única pessoa que Travis conhecia era a si próprio.
Betsy é a sua chance de se regenerar e o protagonista a convida ao cinema. Humilde e simplório, o taxista, apesar de bem-intencionado, derrapa no seu desconhecimento sobre as mais básicas convenções sociais.
Ele a leva a um cinema pornô, sem malícia, apenas por nao ter ideia do que é cinema, nem do que é aceitável em um primeiro encontro. Nesse momento, criamos uma certa empatia pelo personagem, cujo desejo de sair do buraco era genuíno. A cena que marca um ponto de virada na trama é aquela em que Travis liga para Betsy para se desculpar. Três telefones ficam lado a lado: os dois primeiros são arcaicos e o outro é moderno – belo trabalho de direção de arte. Ele usa o terceiro, o que simboliza a sua vontade de evoluir, no entanto, a partir de um travelling espetacular, Scorsese coloca Travis em contato com sua realidade. A moça o ignora e o protagonista caminha em direção à rua escura, à escuridão que tomava conta de sua existência.
Por mais que se coloque em situação relacionável, o que sobressai é o machismo de Travis, que não consegue se colocar em posição de igualdade com as mulheres.
“Como as outras: fria e distante”. “Parecem um sindicato”.
Seu ódio advém de sua imensa insegurança, da impossibilidade de se relacionar com qualquer pessoa. Quando encontra seus colegas de trabalho, Scorsese usa uma baixa profundidade de campo para ressaltar o deslocamento do protagonista nas conversas e fecha o quadro no sal dissolvendo na água, expondo sua dispersão – Travis vive em um mundo paralelo, o que é maravilhosamente acentuado pelo design de som.
Flores, que normalmente representam o amor, aqui são a principal marca da amargura e da solidão do protagonista, cujos presentes foram recusados por Betsy.
A partir daí, o que já era evidente em suas ideias, se torna concretamente perigoso e danoso. Insegurança e ódio misturados resultam em brutalidade e Travis estava disposto a ser notado. Palantine, o candidato à presidência, vira o seu alvo – o roteiro de Schrader traz à tona o tumultuado contexto político americano.
“Não há saída, sou um homem só”. O protagonista precisa fazer algo, limpar um pouco do que julga ser a escória da sociedade, sem pensar em redenção. Seu fim faz parte da jornada.
O braço sobre o fogão é uma demonstração de força e o seu fascínio pela violência é salientado por Scorsese através de close ups, planos em que ele “cria” seu aparato balístico e dos testes finais. A montagem realiza um brilhante trabalho, variando entre essas perspectivas.
Travis compra várias armas, porém a que mais chama a atenção é aquela com o cano longo. Scorsese a apresenta como um objeto a ser apreciado. O protagonista precisa compensar o que não tem…
Ele aponta essa arma em direção a um casal negro na TV e a música escolhida nessa sequência reafirma a sua mentalidade distorcida.
Podemos dizer que o atentado ao candidato à presidência não é bem-sucedido, então seus olhos se voltam à Iris, uma prostituta de doze anos.
Seu cuidado com a garota parece sincero, entretanto, assim como fez com Betsy, ele se coloca numa posição de herói – é o seu arquétipo -, justamente por não aceitar que mulheres possam estar “acima” dele. Iris é uma “presa” fácil. Jovem e desesperada por ajuda, ela enxerga no protagonista a chance de abandonar sua horrenda vida.
Matthew, interpretado por Harvey Keitel, é uma das figuras mais repugnantes da história do cinema; personifica a Nova Iorque setentista em sua decadência, sujeira e violência. A relação do cafetão com a menina é capaz de provocar náuseas no espectador.
Travis invade o bordel tomado por tons de sépia, responsáveis por conceber uma atmosfera claustrofóbica e degenerada. O banho de sangue é cru e realista. Travis não foi até lá para salvar Iris, foi descontar seu ódio ante o descaso que a sociedade lhe oferece e por conviver perto de homossexuais, prostitutas, cafetões, traficantes, negros e “mulheres frias”. E, claro, por viver num estado crônico de solidão e depressão. Seu ato não tem nada de heroico, é puramente selvagem e brutal, e o fato de sobreviver só acentua o seu vazio existencial. Os jornais o reverenciam como justiceiro, o que, na última cena, se prova um grande “nada” para Travis, que dirige seu táxi como no início, num ciclo vicioso, que sempre retorna ao ponto de partida.
Scorsese coloca o espectador na pele do protagonista. O filme se passa inteiramente em sua perspectiva. Os planos subjetivos, às vezes acompanhados de câmera lenta, refletem a aversão que Travis nutre pelas pessoas. De fato, Nova Iorque nunca esteve tão suja e violenta, mas não é exatamente isso o que incomoda o taxista. Sua trágica condição torna sua visão restritiva e egoísta.
O outro momento no cinema pornô demonstra o quão “inexperiente” e confuso Travis é. Ao mesmo tempo em que se excita vendo as imagens, ele tampa parte do olho – aquela intimidade é uma novidade e o deixa desconfortável.
Os planos-detalhe do táxi ressaltam sua importância. De certa forma, o veículo é o único companheiro fiel do protagonista, eles dividem a mesma ótica.
O artifício é brilhantemente utilizado no início, quando os olhos de Travis são mergulhados no vermelho – julgamento moral de Scorsese e o que o “anti-herói” enxerga diariamente.
O primeiro plano do filme é simbólico. O táxi surge de dentro da fumaça, como se estivesse chegando do inferno.
Os plongées são recorrentes, sendo o último – no massacre -, o mais impressionante. Scorsese os emprega como um julgamento divino – algo, aliás, costumeiro em sua carreira. Seu controle perante os intérpretes é fascinante. Poucos diretores dão tanta liberdade para os seus atores; a icônica cena do espelho, por exemplo, foi um improviso de De Niro.
A fotografia tinge Nova Iorque de vermelho e os significados são variados: marginalidade, violência, desejo carnal, dor, prostituição…
Os tons de verde evidenciam a mente doentia de Travis e do personagem interpretado por Scorsese, que participa de uma das cenas mais tensas do filme, fundamental para aumentar a curiosidade do protagonista por armas.
A escuridão e a sujeira compõem perfeitamente um ambiente em plena desordem, contrastando com avanços em outras áreas. Nova Iorque é uma cidade contraditória e as lentes de Scorsese enfatizam isso com uma rara honestidade.
A direção de arte transforma as locações em espaços tristes, decadentes e claustrofóbicos; sem cores e vida. O bordel parece um depósito de lixo e a escuridão denuncia o caráter dos homens que ali habitam e o futuro das moças indefesas.
Cenários e locações se casam perfeitamente com o olhar exausto de Travis – a sua mais notável marca – e com a sua narração claudicante e monotônica, incumbida de ditar sua trajetória e engrandecer a atmosfera da obra. A trilha sonora de Bernard Herrmann é sublime. O tema principal evoca o charme e a decadência nova-iorquina com maestria.
“Taxi Driver” está facilmente entre os dez filmes mais importantes e influentes já realizados.