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“Você não paga seus pecados na igreja. Você os paga na rua. Você os paga em casa. O resto é besteira e você sabe disso”.

Após se confessar, Charlie admite que as palavras do padre pouco importam. Dez “Ave Marias” não o livrarão do sentimento de culpa. Ele retorna à igreja semanalmente, foi educado dessa forma e acredita na salvação. Em vez de preces, o protagonista decide suas penitências para os próprios pecados. Existe um embate entre sua formação religiosa e o seu estilo de vida.

A cena que sucede sua dança com uma mulher negra, mostra ele tocando o fogo de uma vela – autoflagelação. Para se purificar, Charlie precisa sentir o calor do inferno. Sua religião não proíbe esse tipo de envolvimento, no entanto, aos olhos da comunidade ítalo-americana, é quase um crime.

Amor e sexo são praticamente antônimos para Charlie – pureza e sujeira -, não à toa, ao se relacionar com Teresa, evita dizer que a ama, o que, pela maneira que a trata e sorri, é mais do que nítido. Ela tem planos para o futuro e o protagonista gostaria de embarcar nessa jornada, porém só consegue prosseguir com a relação mantendo uma cautelosa distância.

Seu tio é um mafioso poderoso em Little Italy e Charlie, sabendo que em algum momento entrará para os “negócios”, enxerga a oportunidade de assumir o restaurante como um passaporte para a “tranquilidade”, pois assim estaria dentro, mas sem ter que se envolver diretamente com o crime e a violência.

Giovanni, o tio, chama Teresa de “doente da cabeça” – a moça sofre de epilepsia – e pede para o sobrinho se distanciar dela sem ter a mínima ideia do relacionamento escondido. Em seguida, Charlie visita a cozinha do restaurante e expõe a sua mão ao contato com o fogo sobre o fogão…

O primo de Teresa, Johnny Boy, é bastante próximo do protagonista. Poucos personagens na história do cinema têm a capacidade de se meter em tantas confusões. Além de imaturo, descontrolado e “intelectualmente limitado”, Johnny é inconsequente, assumindo empréstimos que não tem condições de bancar. Cuidar do amigo é a principal penitência de Charlie, sua salvação definitiva em meio a uma existência pecaminosa. A presença do protagonista estabiliza o temperamento de Johnny e de seus credores.

Giovanni conhece a sua reputação e avisa a Charlie para não se apegar ao rapaz, ainda que sejam de famílias próximas.

No cotidiano, o protagonista frequenta o bar de Tony – seu amigo -, cobra algumas dívidas, rouba dinheiro de jovens arruaceiros para ir ao cinema, aposta, bebe e briga. Outra figura que desempenha um papel importante na trama é Michael, que faz parte da “turma”, embora passe o filme inteiro cobrando e ameaçando Johnny Boy.

Charlie vive um período de transição – de pecados menores a maiores. Sua jovialidade fica evidente, por exemplo, quando brinca com Johnny no meio da rua ou quando fica completamente embriagado em uma festa. Por outro lado, ele está à beira de comandar um restaurante e trabalhar para o seu tio, o que, obviamente, o afastaria dos amigos e da costumeira diversão. Charlie é maduro e responsável o suficiente para compreender sua situação, mas será que consegue abandonar Johnny Boy e Teresa? Será que consegue entrar na máfia sem sujar as mãos?

A escolha mais lúcida seria fugir com a amada para uma nova vida, o que em nenhum momento é considerado como alternativa viável.

Scorsese coloca Charlie em uma posição complicada e explora brilhantemente o paradoxo entre o catolicismo e o crime.

“Mean Streets” é, até certo ponto, uma obra autobiográfica, afinal, Scorsese viveu em Little Italy, “conviveu” com aqueles personagens e dava o seu jeito de ir ao cinema. Ainda que homenageie sua região e que evoque uma forte nostalgia, ele não glorifica esse estilo de vida nem os pensamentos de Charlie, destacando, no fim, que estes levam somente à autodestruição. O impactante fragmento que dá início ao filme – e a esse texto – é narrado pelo diretor.

A estrutura concebida por Scorsese é extremamente fluida, agradável e refrescante, fugindo um pouco do conceito de “trama”.

As cenas acabam tendo um valor individual e a soma delas forma um retrato rico, prazeroso e complexo. A abordagem é quase documental, o uso constante de câmera na mão gera uma atmosfera crua e emula o comportamento dos personagens.

A sequência de luta no bar de sinuca é um exemplo do quão eficiente esse artifício pode ser. Scorsese imprime intensidade, brutalidade e “imaturidade”, optando também por planos longos e a canção “Please Mr. Postman” ainda confere um tom cômico a cena. Por sinal, as escolhas musicais são espetaculares.

Johnny Boy se sente poderoso ao entrar no bar com duas garotas, logo, a utilização de câmera lenta se mostra empática e importante, colocando o espectador na perspectiva do personagem. Ele caminha em direção a Charlie. O travelling e o do rosto protagonista, mergulhado na cor vermelha, resumem brilhantemente a relação entre os dois. Aceite sua penitência e as consequências…

O diálogo mostrado na sequência é bem revelador, não exatamente pelo o que é conversado entre os dois, mas pelo fato de o “herói da história” estar de frente para Johnny Boy e atrás de uma lâmpada, que o ilumina de cima – a aura de esperança do delinquente.

O longo plano em que Charlie dança no bar é brilhante. Scorsese usou uma espécie de esteira para que ele deslizasse pelo ambiente, provocando a sensação de “estar flutuando”.

Na apresentação do protagonista, o diretor deixa o altar de Cristo fora de foco – baixa profundidade de campo -, ressaltando sua complexa relação com a igreja. Nem tudo faz sentido, nem tudo é seguido, mas sua representatividade é intocável.

Charlie está sempre posicionado entre dois personagens, assumindo uma condição de mediador, e, em determinado momento, Scorsese nos informa o que acontecerá com ele no fim.

Na icônica cena na qual Charlie fica bêbado, a câmera ficou presa em Harvey Keitel, fazendo com que os seus movimentos ditassem o ritmo da imagem.

Algumas marcas registradas de Scorsese já aparecem em seu terceiro filme, como, por exemplo, os travellings laterais e os cortes em sequência, fechando o quadro.

Os créditos iniciais, rodados como um filme caseiro, são fundamentais por tornarem a experiência intimista.

A montagem é especialmente marcante quando o protagonista e Teresa estão deitados na cama; os jump cuts e os planos-detalhe dos corpos são uma clara referência à “Acossado”, de Jean-Luc Godard.

A fotografia merece elogios por mergulhar os personagens num universo avermelhado, sendo o bar de Tony o ambiente a ser destacado, denotando violência e crime. Entretanto, o que mais chama atenção é a culpa católica e a culpa atribuída por Charlie.

Nas locações externas, os tons são frios e a escuridão cumpre um papel primordial na vida dos personagens.

A direção de arte acentua a presença do vermelho e de iconografias religiosas – contraste necessário. A presença de espelhos vai ao encontro da fase vivida pelo protagonista. Charlie se observa como se estivesse buscando respostas.

Robert De Niro está sensacional como Johnny Boy. Sua performance é enérgica e contagiante. A inconsequência está em seus atos e frases sem noção, mas é ao lado de Charlie que enxergamos sua fragilidade e solidão. Sua burrice fica evidente através de sutilezas muito bem pontuadas pelo ator. De Niro alcança a façanha de conquistar o espectador com uma composição que traz à tona a natureza irritante de Johnny Boy.

Sua química com Harvey Keitel é a alma do espetáculo. Charlie não o traz para perto somente por razões ou interesses pessoais, seu amor pelo meliante é palpável.

Keitel oferece uma performance irretocável, transitando brilhantemente em diferentes espaços. Sabemos onde ele se sente confortável e onde faz um esforço para não demonstrar o que pensa. Charlie internaliza suas emoções, está preso a uma série de convenções que envolvem sua criação e convicções “ítalo americanas”. Keitel nos convida a conhecê-lo em todas as superfícies. Em sua mente, não há como fugir, ele sempre será um pecador.

“Mean Streets” é uma obra prima pessoal que desperta reflexões e diverte o espectador na mesma intensidade. Scorsese nos coloca praticamente na posição de amigos daquele grupo, assistimos tudo como cúmplices e nos imaginamos naquelas ruas de Little Italy. 

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