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“Sorcerer” é um filme estruturalmente coeso, que inicia com quatro “partes”. A primeira se passa em Vera Cruz, onde Nilo, um assassino de aluguel, realiza um trabalho. A segunda, em Jerusalém, e segue um grupo de homens-bomba que explode um prédio e planeja a fuga, no entanto, apenas Kassem consegue escapar. A terceira, e mais intrigante, se passa em Paris, tendo como foco Victor, um banqueiro acusado de fraude e suborno. Seu colega, o filho do patrão, é o único que pode inocentá-lo, contudo, a imensa pressão o leva a uma atitude drástica. A última conta com Jackie, o protagonista, e é rodada em New Jersey. Uma gangue assalta uma igreja, mas acaba sofrendo um grave acidente de carro.

Quatro pessoas completamente diferentes, igualmente encurraladas e obrigadas a se exilar. O acaso os direciona para o mesmo local: uma miserável cidade colombiana. Com identidades falsas, eles arranjam empregos insalubres e desumanos, cujo salário chega a ser risível e não lhes dá qualquer esperança de emigração.

A economia do vilarejo é extremamente dependente de uma companhia americana de petróleo. Um dos poços explode, acarretando a morte de vários nativos. Seus amigos e familiares se revoltam e demonstram um profundo ódio pelos estrangeiros, considerados inimigos.

O fogo precisa ser apagado, entretanto, os caixotes de nitroglicerina estão localizados numa região distante. Cientes do perigo e da urgência da missão, os superiores montam uma equipe com quatro trabalhadores capazes de dirigir até o destino e voltar com os explosivos, prometendo vinte mil pesos e um passaporte. “Por acaso”, os quatro sujeitos a quem havíamos sido apresentados são os escolhidos – a não ser por Nilo, que mata o outro integrante para assegurar sua vaga.

Eles adentram a mata sabendo que as chances de retorno são remotas, todavia, não têm escolha, aquela é a única oportunidade de retornarem à civilização e escapar dessa existência sub-humana.

A primeira coisa a ser destacada é o cuidado que a direção de arte tem com o verde, presente nos quatro fragmentos iniciais. Paredes, mesas, roupas, garrafas, decorações e objetos variados são carregados por essa cor, que assume uma conotação bem específica, diferente da que estamos habituados. Friedkin gostava de alegorias e símbolos religiosos. Se os personagens são pecadores, para onde vão? Em vez do inferno avermelhado, o diretor nos apresenta um mais real e palpável: a natureza.

O vilarejo imundo, destruído, violento, coberto pela névoa e rodeado de rostos desesperançosos é a porta de entrada, porém, é o caminho para a nitroglicerina o verdadeiro coração das trevas. Árvores, folhas e plantas perdem sua inocência, assumindo uma representatividade brutal e psicologicamente assombrosa. A história é sobre punição, a força de atos “imperdoáveis”. No trajeto, fica evidente que o terror os humaniza e o último desejo do protagonista é simples e belo. O abismo abre olhos vendados. Eles passam a valorizar certos detalhes e demonstram uma forte vulnerabilidade. O espectador cria um vínculo com o grupo, torce pelo melhor, mas precisa saber que não está diante da redenção puramente óbvia. “Sorcerer” é tão eficaz em seu texto, que mexe com a convicção até dos mais descrentes. A linha tênue entre o certo e o errado existe por algum motivo e esse filme nos mostra isso de uma maneira absolutamente visceral.

Não há uma grande caracterização por parte dos personagens, eles formam basicamente uma unidade. De qualquer forma, seria injusto não analisar o excelente trabalho de direção de arte ao desassociar Victor dos demais. Sua casa é repleta de detalhes dourados e vermelhos, seu escritório é enorme, dominado por pilastras e tapetes e sua vestimenta conversa diretamente com o tipo de restaurante que frequenta. Contudo, e isso é o mais importante, na selva, a riqueza não é um atributo a ser considerado.

O calor de Vera Cruz e Jerusalém é contraposto pela frieza do vilarejo, a princípio, esfumaçado e acinzentado. A jornada obriga a fotografia a mudar sua paleta de cores, indo da escuridão para um azul que se mistura com a palidez dos rostos vazios e assustados. A atmosfera é soturna, desoladora e aterrorizante – suga a sanidade dos personagens. Os breves tons de vermelho estão ligados ao inferno em sua forma “conhecida” e a brutalidade que permeia a trama.

A abordagem de Friedkin é crua e visceral. A câmera na mão é brilhantemente utilizada para enfatizar a violência. Podemos nem ver nitidamente o que está acontecendo, mas sabemos exatamente o porquê desse efeito. Friedkin é um dos cineastas com a maior capacidade de impactar o espectador. Se algo caótico está acontecendo, como, por exemplo, na explosão em Jerusalém e na rebelião dos nativos do vilarejo contra as autoridades, a câmera se movimenta atordoadamente, porque ele quer que experimentemos a exata sensação daquelas pessoas. Os zooms nos aproximam dos rostos e expõem emoções retidas em pequenas expressões. Sabemos que Victor está encrencado muito antes do escândalo de fraude ser anunciado e o olhar de Jackie ao escutar a palavra Manágua é bem significativo – o céu impossível de penetrar?

Plongées e planos abertos ressaltam a magnitude e insalubridade do trabalho dos operários, enquanto close-ups dos homens abrindo os caixotes de nitroglicerina revelam o perigo potencial do material. Contudo, o verdadeiro espetáculo de tensão e horror começa quando os quatro personagens adentram a natureza misteriosa e nada acolhedora.

A icônica cena da ponte bamba é maravilhosa. Friedkin usa todo o seu arsenal, variando entre ângulos baixos, reforçando a extrema fragilidade da ponte, planos subjetivos, que nos colocam na terrível posição do personagem atrás do volante, planos abertos, a fim de dar uma perspectiva mais ampla e igualmente apavorante da situação, e planos fechados. Claro, não poderia deixar de mencionar o impecável trabalho de montagem, cujos cortes constantes não confundem o espectador, apenas tornam a imersão maior.

Outro momento que impressiona, é aquele em que eles organizam um minucioso jeito para explodir uma árvore. Os travellings que acompanham Kassem correndo desesperado e os planos-detalhe da nitroglicerina escorrendo e do saco de areia estourando são controlados magistralmente pela montagem e por Friedkin.

Sonoramente, esta é uma das obras mais fascinantes que já assisti. As explosões são catárticas e nunca deixam de espantar o espectador.

As locações foram escolhidas a dedo e não tenho dúvidas de que o diretor encontrou dificuldades para filmar. Os espaços estreitos e decadentes e a mata claustrofóbica são fundamentais para a fomentação da atmosfera idealizada por Friedkin.

O esforço físico e mental não é recompensado. É como se a natureza se adaptasse para ferir o grupo e destruir suas vidas. Nesse sentido, há de se destacar a sequência na qual a montagem atinge um outro nível, não só de sustentar a tensão, mas de estudar a psique de Jackie. Após vários acontecimentos, o protagonista alucina e uma série de imagens são inseridas, desde o assalto “mal sucedido” e a fuga até as sequências mais enervantes do filme. O turbilhão de pensamentos, somado ao seu rosto pálido, criam uma sensação fortíssima de pânico e insanidade.

A trilha sonora da banda Tangerine Dream é excepcional. Cabe milimetricamente dentro da trama, enriquecendo a narrativa.

Roy Scheider é o principal destaque do elenco. Sua inicial tranquilidade se esvai, dando espaço a uma gradativa vulnerabilidade, com toques sutis de distúrbios mentais. Ódio, desesperança e medo transformam o protagonista em outra pessoa.

“Sorcerer” é o filme pelo qual William Friedkin gostaria de ser lembrado. O fracasso na época de seu lançamento é um tanto incompreensível, afinal, estamos falando de uma obra prima.

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