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Brandon acorda, seu lençol azul claro e sua palidez combinam com a frieza de seu quarto. Ao se arrumar para o trabalho, opta por diferentes camadas de cinza e observa atentamente uma mulher no metrô. Seus olhos não seduzem, praticamente engolem a moça, que se sente agredida e foge. A trilha é tão intensa quanto o olhar do protagonista, cuja intenção era atraí-la como uma presa para algum lugar escuro e silencioso. Brandon tem um bom emprego e é charmoso, entretanto, só consegue chamar a atenção das mulheres até um determinado ponto. Quando a situação sai da esfera carnal para a emocional, ele não sabe o que fazer, se cala e desaparece.

Brandon é um homem doente, preso a um vício que freia o seu amadurecimento e percepção sobre a própria condição. Apenas prostitutas entram em seu apartamento, são suas fiéis companheiras, não pedem afeto em troca, apenas dinheiro. O banheiro é o seu reino, seja em casa, seja no escritório, a masturbação é uma obrigação. Seu laptop simboliza sua degeneração, tomado exclusivamente por sites pornográficos, parceiras virtuais e outros métodos de atingir seu objetivo. Mas, afinal, que objetivo é esse? Brandon é viciado em sexo, não em prazer. O protagonista se importa em sentir algo ao transar? O ato é o que traz a “satisfação”.

Num bar, uma mulher se interessa por ele e oferece uma carona na saída. Em outro filme, provavelmente assistiríamos a algum diálogo. Aqui não, o corte abrupto nos leva a um beco escuro, no qual Brandon a devora com força, sem paixão ou sentimento. Marianne, uma colega de trabalho, o atrai e ele decide convidá-la para sair. Steve McQueen, genialmente, não mostra essa conversa, indo direto ao desconfortável encontro, enfatizando a demora do protagonista para entrar no restaurante. Brandon detesta aquela formalidade, não tem nada a dizer e parece fazer de tudo para afastar a “parceira”. Quando decide tomar uma atitude e levá-la a um apartamento para transar, simplesmente não consegue, o envolvimento emocional, por menor que seja, revela sua impotência. Em seguida, surge uma de suas “amigas” e termina o trabalho sujo. Após o jantar, Brandon pergunta em que período histórico Marianne gostaria de viver e ela responde: “aqui, agora”, o que não faz o menor sentido para o protagonista. Na verdade, nada faz.

Não conhecemos o passado de Brandon, todavia, temos a impressão de que sua família não é a mais presente e de que sua solidão não é uma novidade. Sem auxílio, acorrentado a um vício que o enche de vergonha, ele vaga por Manhattan feito um corpo vazio, disposto a penetrar o que estiver à sua frente. No ápice de sua destruição, Brandon entra em um clube gay obscuro e aceita qualquer coisa. Não satisfeito, ainda transa com duas prostitutas e sua feição, pela primeira vez, demonstra algo. É dor e tristeza que ele sente.

A presença inesperada de Sissy, sua problemática irmã, escancara sua situação para o espectador e para si. O fim da sagrada privacidade expõe seu doentio cotidiano, transformando Brandon em uma figura, gradativamente, mais acuada e envergonhada. Ele se enxerga, mas precisa de ajuda, não tem a menor ideia do que fazer. Por mais benéfico que seja o aparecimento de Sissy, sua extrema carência, decorrente da solidão que também permeia sua existência, coloca uma pressão enorme sobre o protagonista, que não aguenta o fardo e desaba numa espiral autodestrutiva. Sissy tira o irmão da zona de conforto, o obriga a sentir coisas. Lágrimas caem de seus olhos ao vê-la cantar, seu ódio é palpável ao observar seu chefe a paquerando e seu desconforto é imenso ao ser flagrado no banheiro. Tirando a última cena, em que o protagonista explode de raiva, nas outras, ele se resguarda, é claramente afetado, porém internaliza as emoções. Ou seja, quando Brandon não é completamente oco, se fecha, considera esse tipo de exposição uma fraqueza, quando, na verdade, é o que falta para ele dar o primeiro passo para fora do abismo que se enfiou.

A semelhança entre os irmãos para na solidão, de resto, não poderiam ser mais contrastantes. Se Brandon usa roupas cinzas, Sissy improvisa, quer ser notada; se o mundo do protagonista, adentrado pelo espectador, é dominado por tons azulados e paredes dessaturadas, o de sua irmã, pelo menos no palco – seu mundo dos sonhos -, é brilhoso, assim como seu vestido dourado.

Brandon é um viciado e talvez Sissy seja a sua cura – o único rastro de amor genuíno que o ronda. McQueen é bastante coerente, apresenta um arco extenso, coloca o protagonista para refletir e desabar sobre si, contudo, não empurra uma redenção falsa e barata. O desfecho é tão enigmático quanto Brandon, podendo representar um passo adiante ou mais um dia de dor e sexo.

Os trabalhos de direção de arte e fotografia são impecáveis, responsáveis por caracterizar o protagonista em sua completude. Seu apartamento, aparentemente limpo, esconde sujeiras em suas entranhas e não há nenhuma cor viva. A paleta de cores varia entre o azul, o preto e o cinza.

A montagem é especialmente eficaz na sequência de maior degradação de Brandon, alterando a ordem natural dos eventos – causa e efeito. A partir de flashforwards e flashbacks, temos uma noção maior do quão magoado e arrependido ele está e do quão destrutivas foram suas atitudes.

Os cortes acentuam o vazio e a rapidez de suas interações com mulheres.

Steve McQueen conduz a obra magistralmente, demonstrando conhecimento e empatia perante o protagonista. Quando é surpreendido pela irmã, o cineasta, invariavelmente, fecha o quadro, tornando qualquer espaço claustrofóbico, até mesmo sua casa. McQueen opta por planos longuíssimos, sua câmera se propõe a acompanhar Brandon. O plano sequência em que ele descobre que Sissy invadiu seu apartamento ressalta perfeitamente o seu incômodo. A corrida noturna parece eterna, simboliza a agonia do protagonista. Os planos-detalhe reforçam a maneira abusiva que ele observa as mulheres.

Um exemplo sutil dos sentimentos de Brandon está no Rack Focus – mudança abrupta de foco – utilizado por McQueen quando ele percebe as insinuações de seu chefe asqueroso para cima de sua irmã.

Os enquadramentos das costas e da nuca do protagonista salientam sua vergonha e solidão.

McQueen sabia que tinha um diamante nas mãos e deixou boa parte do show para Michael Fassbender, que oferece, possivelmente, a melhor performance da década passada. Sua expressão passiva e distante esconde uma profunda angústia, exposta também no seu comovente choro e nos ataques que têm com Sissy. Olhares nunca foram tão perigosos e intensos quanto os de Fassbender na cena inicial no metrô. Sua caracterização é repleta de camadas, sutilmente estabelecidas pelo ator, que dita o tom do espetáculo. Brandon pode falar para Marianne que está tranquilo e seguro, mas sabemos que não é verdade.

“Shame” é um estudo de personagem aterrador. Uma obra prima visceral e honesta.

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