O Som Ao Redor” é um filme de barreiras físicas e imaginárias. Praticamente todos os espaços são cercados por grades, pilastras ou muros. Até mesmo os ladrilhos remetem a uma espécie de prisão. A arquitetura de Recife – tomada por arranha-céus – é opressiva e desregular.
O diretor Kleber Mendonça Filho adota um estilo similar ao de Michael Haneke ao captar situações simples do cotidiano de pessoas completamente diferentes, com o auxílio de uma montagem seca e orgânica, e uma sensibilidade apurada. Dessa forma, “O Som Ao Redor” se torna, ao mesmo tempo, um estudo de personagens e de classes.
Bia não consegue relaxar ao ouvir o latido do cachorro do vizinho. O quadro fecha em seu rosto, que denota impaciência e ansiedade. É o tipo de coisa que nem sempre notamos, mas está lá, para nos desafiar. As angústias são individuais, assim como as resoluções e tentativas de distrair a cabeça. Não sabemos por que aquele latido a incomoda tanto, mas é visível, seu olhar não consegue esconder. Nesse sentido, é fascinante perceber como Bia busca encontrar prazer em um cotidiano tão pacato e vazio. Da mesma forma que estranhamos as atitudes da personagem, passamos a encará-la como um ser humano real e relacionável. O momento em que seus filhos improvisam uma massagem é um dos mais bonitos do filme.
João parece satisfeito com a mediocridade. Sua voz sai para dentro e sua motivação para seguir no emprego que têm é pequena. Seus olhos brilham quando estão perto de Sofia, no entanto, em vez de agarrar a oportunidade, ele se contenta com pouco, alegando que ela o largou por ter uma história em outro lugar. João é um personagem introspectivo e quieto, que sabe de onde veio e que suas mãos podem estar sujas com o sangue de outras pessoas.
Francisco é o dono do pedaço, um sujeito acostumado a dar ordens e se impor. É extremamente autoritário e invasivo, muitas vezes sem perceber, como na cena em que “implora” para Sofia se casar com seu neto. Quem vai à sua casa e não pertence à sua classe social não pode passar da cozinha. Perceba que os seguranças não fazem sequer um movimento até a chegada de Francisco e não é ele quem os leva até a porta, é a empregada. O espectador tem acesso ao interior de sua casa apenas quando o personagem o “convida”.
Em relação às classes, aqueles que têm uma condição superior são indelicados e agressivos, mesmo quando tentam ser empáticos, acabam atingindo o efeito contrário, demonstrando uma desconexão absoluta em relação às vidas alheias. Os que usam como argumento o seu status, tendem a ser os mais inseguros, sendo Dinho o exemplo mais óbvio. Às vezes as pessoas não olham, ignoram e machucam os outros, que agem, silenciosamente, como é o caso de um porteiro que arranha o carro de uma mulher. A reunião de condomínio pela demissão de um velho funcionário do prédio é um show de egoísmo e falta de empatia. João, o único que demonstra alguma indignação com a postura dos vizinhos, acaba fugindo da reunião para encontrar Sofia, atitude que compromete um pouco a nossa imagem em relação ao personagem.
A disputa de egos é tão grande que até mesmo uma pequena diferença no tamanho da TV é motivo para desavenças e brigas.
É interessante notar que a empregada de João demonstra entusiasmo e realiza suas tarefas com vontade, em contrapartida, sua filha, não economiza em caretas e faz as coisas de qualquer jeito. São gerações distintas, uma acomodada, outra revoltada, ainda muito longe de um relacionamento razoável. É preciso respeito e empatia para alcançar o entendimento, mas também é necessário se expressar melhor.
O propósito das imagens iniciais é nítido: ainda prevalece o tratamento de Senhor e escravo; Casa Grande e senzala, o que fica mais óbvio quando Fernando, em sua primeira aparição, diz que é o dono da rua. Kleber Mendonça trata muito bem os núcleos, mas não esquece que dentro deles estão indivíduos, repletos de desejos, inseguranças, medos e angústias.
Seu roteiro ainda é competente o suficiente para criar uma trama vingativa que se desenvolve lentamente. Irandhir Santos está excelente como Clodoaldo, um segurança, aparentemente leal e atencioso, que, gradativamente, demonstra seu real interesse na rua dominada por Fernando.
Uma das grandes qualidades de “O Som Ao Redor” é “imaginar” o que acontece de forma silenciosa no cotidiano. O que as pessoas fazem quando estão sozinhas? Algumas fogem da “senzala” e se entregam a desejos primitivos, outras assistem a intimidades na câmera de segurança, a empregada pode ver o patrão e sua namorada pelados e assim por diante. Kleber Mendonça merece todos os elogios por ter idealizado uma obra tão realista e original. A sequência que mais me chamou a atenção é aquela em que uma garota de classe média alta acompanha de seu prédio, um garoto chutando uma bola, que acaba caindo do outro lado do muro. A distância entre os dois é física e simbólica, sendo a bola a única capaz de transitar entre os dois universos. Os diálogos são maravilhosos, trazendo um senso de cotidiano muito forte. Nesse aspecto, pode-se dizer que Kleber Mendonça tem uma qualidade quase “tarantinesca”.
Sua direção é admirável, sempre guiando o espectador a observar os elementos fundamentais em tela, sem se tornar didática. Seus close-ups são impressionantes, conseguindo extrair algo a mais dos personagens e instaurando um clima crescente de tensão. São raros os confrontos, mas a forma como Kleber Mendonça posiciona sua câmera, tirando sempre proveito dos espaços, é fascinante e suficiente para nos deixar com uma pulga atrás da orelha. Os personagens em segundo plano estão ali por um motivo muito bem estabelecido e seus planos gerais de Recife são significativos.
Além da excelente montagem, gostaria de destacar o eficiente design de produção, que diferencia bem os ambientes, a fotografia, principalmente por ressaltar a escuridão na vida de Bia e o design de som, que foge da proposta naturalista para gerar desconforto e agitação. A cena final é absolutamente maravilhosa, assim como a que a precede e outras tantas.
“O Som Ao Redor” é uma estreia corajosa, de um dos principais diretores da atualidade no cinema nacional.
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