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Diferentemente da maioria dos filmes analisados aqui, “O Exorcista” não suscita reflexões no espectador. Seu brilho está em sua efetividade, alcançada através de uma narrativa ambiciosa e engenhosa.

Não há espaço para arcos de personagens, nem grandes questionamentos, o principal mérito de Friedkin é conceber uma atmosfera aterrorizante.

Regan não poderia ser uma garotinha mais simpática e adorável. Ela brinca e ri com sua mãe, Chris, e demonstra uma rara ingenuidade. No consultório, o médico fica impressionado com o seu extenso vocabulário chulo. Não vemos nada, estamos na mesma posição de Chris e esse é um dos motivos pelo estrondoso êxito da obra. Antes do festival de horror, algumas coisas são sugeridas, o terreno é preparado meticulosamente, tornando as imagens ainda mais poderosas. Olhares bizarros e reações anormais são acompanhados de laudos excessivamente “profissionais e cautelosos”. A cama balança como uma onda tempestuosa e ela urina na frente de várias pessoas, literalmente no chão. O espectador sabe exatamente onde se meteu, o mesmo não pode ser dito sobre os personagens, que demoram até perceber que esse não é um caso clínico.

As recorrentes consultas são, na verdade, uma excelente forma de alongar a tensão, de dar tempo para Regan se transformar inteiramente. Os exames são verdadeiras torturas psicológicas, na qual esperamos o momento em que algo acontecerá. Muitas vezes somos tapeados, sustos baratos são completamente ignorados.

A outra figura fundamental na trama é o jovem Padre Karras, que trabalha na ala psiquiátrica de uma igreja e admite ter perdido parte de sua fé. Sua doente e abandonada mãe morre na pior condição imaginável. Se sentindo culpado e sem rumo, Karras é o único capaz de ajudar a garotinha “diabólica”. Nem o Padre acredita na possibilidade de um exorcismo, no entanto, assim que a visita, percebe que precisa intervir rapidamente. Ao seu lado, Merrin, um Padre experiente e estudioso, que inicia o filme no Iraque, onde encontra um objeto que o perturba profundamente.

A história está basicamente aí. Vamos ao que interessa.

A fotografia opta por tons acinzentados, deixando nítido, desde o início, a intenção do diretor. A falta de cores também conversa diretamente com a fase que os personagens, principalmente Karras, estão passando. A intensidade do horror é gradativa, o que fica evidente na mudança radical que a casa da família MacNeil sofre. A princípio, um ambiente que personifica a pureza de uma criança, por seus longos espaços, detalhes singelos, bonecos e paredes floridas, a casa, aos poucos, fica completamente pálida, aparenta estar adoecida, tomada por tonalidades frias e pela fumaça. As cores vivas e a decoração continuam ali, contudo, são engolidas pela névoa das trevas. A roupa de cama de Regan perde suas camadas, indo da alegria à tristeza. A residência, de certa forma, simboliza a possessão e o cuidado dos realizadores para que notemos isso é fascinante.

A casa da mãe de Karras é escura, mas não tanto quanto a sua, que impressiona pelo pequeno tamanho. Sem fé, o padre se vê sem luz, preso a uma claustrofobia temível. Sua foto lutando boxe diz algo sobre o seu passado, porém sabemos que sua luta atual é muito mais árdua.

A luz vermelha que cobre o rosto de Regan em um dos exames é um importante prenúncio. O uso de contraluz, aliado a imagem da garota contorcida e do diabo em sua estrutura bruta é perfeito. Não existem espaços convidativos. As ruas, as casas e a própria igreja, cuja cor predominante é o vermelho, são extremamente intimidadoras.

Chris, atriz e mãe amável, dona de uma alegria palpável, deixa as roupas leves e coloridas de lado, se cobrindo inteiramente, a ponto de não vermos seus olhos, nem seu pescoço.

O doutor atende em seu sóbrio e esteticamente impecável consultório, cheio de teorias e ideias. Sua última conversa com Chris se passa em uma sala escura – suas esperanças se foram.

A direção de arte e a fotografia cumprem brilhantemente a função de dar “vida” ao espetáculo e expor a psique dos personagens.

A montagem é de uma elegância ímpar. Cortes abruptos ligam Karras à família MacNeil, não somente porque irão se encontrar em breve, mas por passarem por períodos “infernais”. O momento em que isso fica mais evidente é aquele no qual o grito de dor e pavor de Chris é sucedido por um plano do Padre correndo – rima belíssima. Elas precisam desesperadamente de ajuda.

Outra sequência que segue um padrão similar ocorre quando Merrin recebe a carta e caminha em direção ao rosto da possuída Regan – imagens sobrepostas. Exorcizar a garota e os demônios internos, negados por algum tempo.

A inserção dos pesadelos de Karras ratifica o seu trauma e sentimento de culpa e ajuda a constituir a atmosfera idealizada pelo diretor, que coloca, delicadamente, o rosto do capeta em rápidas passagens.

O “confronto final” é extenuante pela entrega dos atores, mas também pelos inúmeros cortes, que potencializam a tensão e dão ao espectador a possibilidade de enxergar o exorcismo por todas as perspectivas.

William Friedkin estava com a bola toda. Sua concepção de quadros e entendimento que demonstra acerca do horror são inigualáveis.

Logo no início, ele apresenta Merrin, ainda no Iraque. O já citado objeto faz as suas mãos tremerem – movimento emulado pela câmera e repetido no clímax -, entretanto, o que realmente chama a atenção é o plano conjunto do Padre de frente para uma estátua do diabo – bem x mal.

O cineasta foca em Regan, no seu rosto e em seu comportamento, dessa forma, faz com que o espectador se afeiçoe pela garota. Caso contrário, não sei se teríamos a mesma empatia por ela. Os mesmos close ups são utilizados para marcar o seu arco.

O horror sugestivo e invisível só é possível graças a zooms-out e travellings, que, geralmente, nos levam a Regan, que está distante da ação central.

O uso de câmera na mão e de movimentos que simulam atordoamento são frequentes e, como tudo nesse filme, conversa com o pavor e a reação dos personagens. O plano fechado no rosto do psiquiatra é uma das maiores demonstrações de pavor que o cinema já nos proporcionou.

Em determinada cena, o diretor opta por um plano aberto, mostrando a quantidade de médicos contratados por Chris, sentados em uma enorme mesa. A falência emocional da mãe é evidente e há também um discurso sobre o limite da ciência, diretamente associado a presença de forças maiores – fé.

Assim que Karras percebe que não tem outra saída e que terá realmente que realizar um exorcismo, Friedkin o acompanha descendo as escadas através de um ângulo baixo, gerando estranheza no espectador, que não havia sido apresentado àquela ótica – abalado, ansioso.

No exorcismo, Friedkin utiliza um contra-plongée para dar força e imponência a Merrin, contrastando com o seu notável medo.

A posição dos personagens nessa sequência é bastante reveladora. O demônio fica de um lado, Merrin do outro e Karras no centro – os mais experientes nas extremidades e o jovem que precisa lutar contra seus instintos no meio.

Certas sutilezas merecem destaque, como, por exemplo, uma cena na qual Karras e um tenente conversam sobre bruxaria e, ao fundo, as pessoas estão jogando tênis. Existe o mundo que habitamos e estamos acostumados e o que os personagens estão imersos.

Acredito que nenhum outro filme seja visualmente tão perturbador quanto esse. A criatividade de Friedkin me apavora e não tem limites. O vômito, a cabeça girando, o corpo invertido descendo as escadas e a masturbação com o crucifixo são especialmente assombrosos. O fato do diabo ser tão perverso, obsceno e traiçoeiro torna as coisas ainda mais interessantes. O corpo de uma criança, a voz do inferno e palavras incabíveis no texto – uma rara combinação.

O trabalho de maquiagem é espetacular. Diria que em termos de impacto imagético, só está atrás de “A Mosca”, sendo tão aterrorizante quanto. É interessante notar quão gradativa e minuciosa é a transformação facial e corporal de Regan. Os efeitos práticos não envelheceram em nada, seguem eficientes.

A trilha sonora é arrepiante. O piano é possivelmente o instrumento mais versátil e está a todo o vapor, com sua “falsa” tranquilidade.

Linda Blair oferece uma das melhores performances infantis já vistas. Sua pureza é genuína e sua fisicalidade é assombrosa. Difícil acreditar que uma atriz tão jovem foi capaz de se entregar dessa maneira.

Ellen Burstyn rouba a cena, dando vida a Chris, uma mãe acolhedora e doce que se depara com o pior pesadelo que um ser humano pode imaginar. A atriz conjuga magnificamente pavor, melancolia, abatimento e desesperança. Sua curvatura e fraca entonação vocal – gritos também fazem parte de sua composição – são marcas de uma mulher enfraquecida e de uma interpretação icônica.

Max Von Sydow e Jason Miller compõem impecavelmente o núcleo principal.

“O Exorcista” é o melhor filme de terror já feito? Com certeza.

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