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Harry Moseby é um detetive particular que esbanja carisma e bom humor. A verdade é que ele se isolou em uma ilha na qual evita lidar com problemas pessoais resolvendo os de seus clientes. O protagonista se considera esperto e perspicaz, mas não é capaz de perceber a infelicidade de Ellen, sua esposa, que busca conforto nos braços de outro homem. Harry está sempre em movimento, pouco observa o que está diante de seus olhos e se perde ao longo da trama. Sua inicial segurança desmorona ao flagrar Ellen com o amante. A princípio, sentimos pena pelo detetive e notamos uma certa inversão de papéis quando a moça se irrita, no entanto, gradativamente, a entendemos: Harry é um sujeito difícil de lidar, preso a um ofício que negligencia sua própria vida. Mesmo a questão da infidelidade no seu matrimônio é tratada por ele como um caso investigativo.

A fim de espairecer, o protagonista aceita um trabalho aparentemente simples: encontrar Delly, uma adolescente que muito provavelmente está na Flórida com seu padrasto. No caminho, Harry conversa com peças importantes do complexo quebra cabeça desvendado no fim, contudo, ao chegar lá, se depara com uma tranquilidade que não vislumbrava há tempos.

A música alegre e a luz radiante contrastam com o que havíamos visto até então. “Night Moves” caminha por águas profundas e inconclusivas, cresce junto com o detetive, que descobre da pior maneira possível, que sempre esteve um passo atrás do caso que julgava ser fácil. Paula, parceira do padrasto de Delly, surge como um novo interesse romântico e por mais misteriosa que seja, no fundo, é uma mulher fragilizada e abandonada, que acumula experiências humilhantes e simplesmente obedece a ordens. A cena de sexo entre os dois expõe um lado adormecido no protagonista, que, pela primeira vez em anos, se entregava a sentimentos genuínos. Na Flórida, ele encontrou o que parecia ter morrido, não só o amor, mas uma jovem altamente explorada e sexualizada, por quem cria um afeto paternal. Tudo feito: Delly se convence de que voltar para sua problemática e controversa mãe – uma atriz decadente – é a melhor opção e o protagonista conclui o caso. Em casa, Harry tem o “prazer” de flagrar sua esposa novamente e decide abandonar o cargo de detetive. Quando encontramos sentido para nossas vidas, percebemos que não precisamos buscar “excitação” em dilemas alheios. O protagonista ainda ama Ellen e é empático ao não culpá-la, entendendo que o grande culpado foi ele. Todos as figuras estão envolvidas no ramo cinematográfico, porém nada soa estranho a ponto de levantar suspeitas. Até que, em uma bela manhã, Harry descobre que Delly morreu em um acidente no set de filmagem e que o corpo que havia visto no fundo do mar na Flórida, era o de Marv Ellman, um dublê. O detetive não consegue, seu ímpeto o obriga a retornar à ação. Quentin, mecânico e rival de Marv, é um suspeito plausível e o fato de Delly ter desvendado o assassinato possivelmente a transformou num alvo. Harry foi feito de bobo o tempo todo, tropeçou na verdade e a deixou escapar. A simplicidade inicial do caso era uma fachada para um plano grandioso. Delly não deveria ter morrido e sua gananciosa mãe, apesar de desejar sua herança, não era responsável por nada. Sem Paula e Ellen, Harry termina o filme literalmente ilhado, preso ao que maquiou sua infeliz vida. Todos perdem, mas é o protagonista que tem o arco mais irônico e significativo. Tudo que dava sentido e prazer a sua existência era, na verdade, uma cortina de fumaça que encobria seus defeitos. A perspicácia parte de casa, não das ruas.

O diretor Arthur Penn cria uma lógica fascinante envolvendo a posição dos atores no quadro. Percebam que, na maioria das cenas, Harry está distante das pessoas, ressaltando a natureza ambígua e condenável dos personagens. Ele só se aproxima verdadeiramente de Delly, Paula e Ellen – no terceiro ato –, que, de fato, são as únicas pessoas nas quais o protagonista pode confiar. Dessa forma, Penn coloca o espectador um passo à frente do detetive, salientando sua incompetência. As brigas são excepcionalmente coreografadas, impressionam pelo realismo e pela nitidez. Os cortes apenas acentuam a brutalidade dos atos.

O plano geral que fecha a obra é simbólico, conversando diretamente com o arco e a vida de Harry, além de ser apavorante. Penn apresenta o protagonista como um sujeito seguro e engraçado e, rapidamente, o desmonta. Ao flagrar a esposa, em casa, ele se cobre em uma persiana e se esconde atrás de uma cadeira – a subversão total.

A fotografia opta por uma escuridão gradual, a ponto de enxergamos somente o rosto do detetive, ressaltando sua solidão, o turbulento casamento e o enigma que persegue.

As paisagens ensolaradas e a trilha contagiante contrastam com o restante do filme, ampliam a ótica de Harry, que redescobre o sentido de sua existência. O design de som, principalmente na última cena, merece elogios – não há nada mais assustador que o silêncio.

Gene Hackman não tenta ser o novo Sam Spade, pelo contrário. Seu personagem é um “anti-detetive”, nada charmoso e pouco atormentado. O protagonista nega sua boa vida e anda em círculos, resolvendo casos sem sair do lugar, abdicando de sua esposa e de uma felicidade verdadeira. Ele mesmo se coloca no buraco e, ainda que perceba isso, não tem forças suficientes para abandoná-lo. Carismático, Hackman transita entre diferentes fases, sua caracterização de um detetive talvez seja a mais humana que já vi, surpreendente até o fim. Ele quer ser feliz, mas não sabe como, parece ter uma âncora amarrada em seu tornozelo.

“Night Moves” é uma obra prima noir cujo grande êxito é a sua originalidade.

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