My Darling Clementine

Doc, por outro lado, era um médico conceituado, todavia, se tornou um alcoólatra, um sujeito perigoso e autodestrutivo que prefere a morte do que viver e se lembrar do passado.

Ele e Os Clanton – família que parou Wyatt e seus irmãos no início –, fazem de Tombstone um ambiente cujo comportamento é calcado na ameaça, no medo constante.

Clementine, a moça que dá nome ao título, é delicada e doce, não pertence àquele lugar. Conheceu Doc em Boston, se apaixonou pelo médico e tem o desprazer de se deparar com uma pessoa completamente diferente, insensível em seus atos e forma de se expressar. Ela é a personificação do único rastro de pureza em Tombstone: o amor. Doc tem razão em não querê-la na cidade. Algumas coisas são preciosas demais para se perderem à toa.

Wyatt, por mais que não diga, se apaixona por Clementine. Se em algum momento se diverte ou sente algo “novo”, é quando está ao seu lado.

Ela pouco aparece e o fato de seu nome estar no título é uma maneira elegante de Ford dizer que, sim, aqueles homens diferentes, porém igualmente deprimidos, foram ou podem ser muito felizes.

Por último, temos Chihuahua, cujo nome não poderia ser mais preciso. A personagem corre atrás de Doc como um cachorro carente, se rebaixa e se desvaloriza a ponto de ser inconveniente. Uma figura triste e solitária, que se coloca em uma posição que ratifica o seu desespero por ser notada e amada.

O roteiro constrói personagens e laços tão fascinantes, que a questão-chave da trama – a busca de Wyatt pelo assassino de James -, acaba ficando em segundo plano, sendo, inclusive, esquecida. O que realmente importa em “My Darling Clementine” é a compreensão do universo em que os personagens estão inseridos. O Velho Oeste suga qualquer essência e virtude, transformando seres humanos em animais; a violência em algo banal. Entramos em contato com o que sobrou daquelas pessoas, não temos o direito de dizer que os conhecemos inteiramente.

O clímax reafirma a natureza brutal e primitiva de Tombstone, oferecendo o único desfecho possível para cada personagem.

A fotografia em preto e branco é maravilhosa. Quando Doc surge, fica no canto mais claro do quadro para que o espectador possa vê-lo, no entanto, o que mais chama a atenção, é a fumaça que o circunda, ressaltando a sua reputação. O restante é posicionado na parte mais escura, afinal, estão com medo, menos Wyatt, que caminha em sua direção. Na cena em que observa seus diplomas, Doc se encontra numa escuridão absoluta, não se reconhece. E quando é obrigado a voltar ao antigo ofício, é engolido por sua enorme sombra – como se existissem duas pessoas. Ele chega a sentir o velho prazer, deixando o espectador aliviado, contudo, rapidamente retorna ao seu estado crônico de depressão e ódio próprio.

O momento mais radiante, é justamente o que Wyatt dança com Clementine na inauguração da Igreja – rara situação comemorativa.

A direção de arte é responsável por uma reconstituição de época impecável e por deixar claro que existem núcleos distintos dentro do mesmo ambiente. As paisagens extensas, desérticas e silenciosas, tomadas por cânions, contrastam com os saloons, barbearias e casas de show. O amuleto que James carregava, os diplomas de Doc e o sino da Igreja são objetos de extrema relevância no desenvolvimento da trama e do arco dos personagens. As batidas representam o início da esperança ou o chamado para o embate?

O figurino de Clementine destoa dos demais, sendo charmoso e belo – instantaneamente, percebemos que ela é uma figura “estranha” em Tombstone.

John Ford conhecia o Velho Oeste como ninguém. O universo idealizado pelo diretor é riquíssimo, palpável e real. Ele reforça a posição de igualdade entre Doc e Wyatt desde o início, em um diálogo no qual os planos de ambos são simetricamente idênticos. Entretanto, quando estão no mesmo quadro, é o xerife quem fica de frente – autoridade máxima e protagonista.

O filme tem suas referências religiosas e a mais significativa é bem sutil. Ford usa um plongée, conhecido também como ponto de vista de Deus, enquanto os irmãos velam o corpo de James.

Invariavelmente, ele opta por contra-plongées, que dão a impressão dos personagens estarem próximos das nuvens, o que pode ser interpretado de diversas formas. O povo local sofre tanto, que irá direto para o céu.

Todos estão sujeitos a um fim abrupto, cruel e repentino, logo, estão sempre “colados” ao infinito.

Seus close ups são intensos, capazes de criar rivalidades sem um mero gesto raivoso, somente com a força do olhar.

Ford explora a banalidade do Velho Oeste, variando entre uma violência minimalista e milimetricamente calculada, com confrontos, ainda que nítidos aos olhos do espectador, completamente caóticos – cortes efusivos.

Henry Fonda era um ator genial. Ele pouco fala, seus momentos mais expressivos são aqueles em que fica em completo silêncio, como, por exemplo, quando encontra o irmão morto e segundos antes de convidar Clementine para dançar. A dor e a insegurança estão em seu olhar e Fonda não faz esforço algum para exibi-las.

No desfecho, chegamos à conclusão de que é possível amar no Velho Oeste, todavia, o sentimento é praticamente impossível de ser consumado e poucos o conhecem. “Não, sou apenas um barman”.

Trágico e belo, “My Darling Clementine” é um clássico da sétima arte.