Se “Do The Right Thing” é o trabalho mais importante da carreira de Spike Lee, “Malcolm X” é o mais ambicioso. Admito que não conhecia profundamente a história do protagonista e apreendê-la através do filme me impactou sobremaneira. Não sei se o cinema já proporcionou um estudo de personagem tão denso e cuidadoso quanto esse. Existem tantas facetas dentro de Malcolm, que poderia fazer um texto sobre cada uma.
Não é nada fácil realizar um épico, uma obra de mais de três horas capaz de segurar o espectador, sem ser exaustiva ou soar pretensiosa. Spike Lee conseguiu, não só por ter escolhido uma figura tão rica, mas por ser um diretor dotado de um talento absurdo.
O filme inicia em Boston, onde um jovem Malcolm alisa o seu cabelo, olha para o espelho, sorri e diz: “pareço um branco”. Ele vai ao baile local com seu amigo, Shorty, e dança com algumas moças. No entanto, a que chama a sua atenção de fato, cuja luz forte reforça o seu sentimento, é Sophia, uma moça branca e loira.
Se trata de um desejo estranho e antigo. Malcolm precisa ter uma mulher que represente todo o mal que a sua raça sofreu. Vingança? Prazer? Curiosidade?
Através de flashbacks, descobrimos que seu pai era um pregador perseguido pela KKK e que sua mãe, apesar de branca, detestava a sua cor. Após fugas e ameaças, seu pai finalmente foi assassinado, deixando toda a responsabilidade de criar cinco filhos para sua mulher que, sem opção, os viu serem tomados pelo Estado e distribuídos para diferentes famílias. Malcolm era o único negro da sala na sua escola, tratado como mascote pelos colegas e sempre desencorajado pelos professores, que viam na carpintaria a melhor opção para o seu futuro.
A montagem intercala perfeitamente passado e presente, contextualizando a situação de Malcolm, que acreditava genuinamente que o negro era inferior e que seus sonhos não poderiam ser grandes demais. Trabalhando em um trem – um dos poucos momentos alegres e leves do filme -, o protagonista acaba conhecendo West Indian Archie, um mafioso local que gosta da personalidade forte de Malcolm e decide agregá-lo ao seu grupo. O problema estava resolvido, agora ele era alguém, andava com pessoas temidas, carregava uma arma e receberia uma bela quantia. As cores de sua roupa vão desaparecendo junto com sua pureza. O azul claro, o cinza e o preto fazem parte de sua nova fase. Archie é um chefe de respeito – ao mesmo tempo, duro, generoso e amedrontador – e ensina bastante a Malcolm que, entretanto, em um momento de infeliz descontração, coloca tudo a perder.
O protagonista foge e volta para Boston, onde, ao lado de Sophia, Shorty e Rudy se torna um assaltante. A cena da roleta russa e a sua necessidade de exibir objetos dourados provam que os últimos resquícios do Malcolm ingênuo haviam se extinguido.
Ele acaba sendo preso, conhece Baines e começa o seu processo de conversão para o islamismo, tocado pela pregação do líder Elijah Muhammad: em vez de vergonha, os negros deveriam se amar e sentir orgulho por serem a raça original, responsável pela criação do universo. Para Baines, todos os brancos eram demoníacos e tudo aquilo que Malcolm havia escutado sobre os negros era a história distorcida, contada pelos invejosos e diabólicos. Qual a evidência de que Deus era branco a não ser as imagens nas Igrejas? A bíblia o caracteriza como um negro, mas os olhos brancos estão preocupados demais com a sua verdade, a que lhes coloca em uma posição de superioridade. O dicionário também foi escrito por eles e a discrepância entre a discrição de ambas as raças é assustadora.
Convertido, Malcolm recebe uma carta de Elijah Muhammad, momento no qual o protagonista finalmente se vê iluminado e relevante dentro do contexto geral.
Ele se torna Malcolm X, cuja letra representa algo desconhecido. É assim que os negros se sentem, não como americanos, mas como seres tentando se libertar e encontrar um lugar de igualdade. Rapidamente, Malcolm X ganha notoriedade, com discursos enfáticos e poderosos sobre a dignidade negra, a necessidade de se abraçarem e enxergarem no branco um potencial inimigo.
Seguindo as palavras de Muhammad, o protagonista se torna um ícone, um símbolo de um povo oprimido e desesperado. Malcolm se casa com Betty, com quem tem dois filhos e, mesmo apaixonado, não consegue ser muito presente, pois seu tempo está dedicado à salvação do mundo. O poder gera inveja e, repentinamente, o que parecia estável e sagrado se corrompe. Baines não era tão puro assim e Muhammad, cujas pregações eram rigorosas, tinha filhos fora do casamento. No ápice de seu radicalismo e brigas com a mídia, Malcolm perde a fé ao notar que o sagrado era a religião, não as pessoas, afinal, qualquer um pode se corromper. Sofrendo ameaças e partindo em uma nova caminhada de autoconhecimento, Malcolm vai para Meca, a cidade sagrada. No seu retiro, descobre que a religião não é sobre uma raça, mas sobre irmandade e o amor em comum a um Deus. Generalizações são injustas e nada saudáveis.
Malcolm percebe contradições no seu discurso antirracista, e, mesmo mantendo uma postura defensiva em relação ao convívio entre brancos e negros, se abre, dispondo-se a ouvir todas as raças.
Cada vez mais humilde, cheio de ideias próprias e de amor, Malcolm precisa conviver com as constantes ameaças dos antigos parceiros. Tudo nos leva ao seu fatídico e brutal fim. Felizmente, Lee termina sua obra de uma forma lindíssima.
Mais uma vez, o diretor toma conta do filme, esbanjando um domínio invejável da linguagem cinematográfica. Close ups são recorrentes, sendo fundamentais para ressaltar as diferentes fases de Malcolm; Lee usa os planos de perfil para aproximar certos personagens, como, por exemplo, nas cenas do protagonista com Betty; suas movimentações de câmera sempre levam o espectador a enxergar algo a mais; o plongée é simbolicamente apropriado para marcar sua morte; possivelmente a sua principal marca, o “Double Dolly” é utilizado no fim, quando Malcolm aceita seu destino. É de se enaltecer a cena em que Malcolm é praticamente dispensado por Muhammad – a distância entre os dois no quadro deixa claro o que irá acontecer muito antes das palavras serem ditas.
A montagem, além de usar flashbacks coerentemente e criar rimas visuais, impressiona pela capacidade de gerar tensão – principalmente no final – e merece elogios por dar ao filme um teor documental. Várias imagens de arquivo são utilizadas e muitíssimo bem inseridas. Em uma mesma cena vemos Malcolm em cores e em preto e branco, reafirmando o tamanho do protagonista, a todo momento filmado. Basicamente, a montagem é o elemento que dá fluidez e equilíbrio a um filme e “Malcolm X”, embora dure mais de três horas, é sempre uma experiência contagiante e inventiva.
A direção de arte merece elogios pela reconstituição de época, principalmente na primeira parte, em que os figurinos, os cenários e os bailes chamam bastante a atenção. O vermelho está presente em todas as fases, seja para representar a violência, o amor, a luxúria, o poder ou o ódio. É interessante notar que todas as cores fortes vão, gradativamente, desaparecendo. É uma escolha interessante, que conversa diretamente com a perda da inocência de Malcolm, que se torna cada vez mais radical e dominado por um sentimento corrosivo. Se seu primeiro paletó é laranja, o último é preto.
A fotografia é azulada e escura em boa parte do filme, a não ser nos momentos em que Malcolm se vê “iluminado”.
A trilha sonora é extremamente efetiva, às vezes discreta, mas fundamental nos momentos em que ajuda a criar uma atmosfera de inquietude.
Por último e não menos importante, Denzel Washington. O que dizer sobre essa interpretação? Poucas na história são tão perfeitas, sutis e grandiosas. O ator passa por um arco enorme e cria nuances em todas as fases. Há muito controle, mas também bastante emoção. É uma verdadeira aula de construção de personagem. Sua transformação física é impressionante, assim como sua alteração na entonação vocal, contudo, estes são apenas detalhes no contexto de uma composição que varia entre extremos e alcança o raro resultado de se confundir com a pessoa real.
O protagonista está em constante aprendizado, suas mudanças são bruscas e provam que Malcolm era um homem insatisfeito consigo, buscando sempre uma versão superior de si e o melhor para sua raça e para sua família.
Eu sou um fã da performance de Al Pacino em “Perfume de Mulher” e entendo o motivo pelo qual a Academia o premiou na edição de 1993, no entanto, não posso deixar de afirmar que o trabalho de Denzel Washington é infinitamente mais desafiador e complexo.
“Malcolm X” é um épico, uma obra prima sobre uma figura fascinante, construída por um diretor revolucionário.
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