“Magnolia” é o tipo do filme, que em mãos erradas seria um dramalhão totalmente bagunçado. Felizmente, ele foi dirigido por Paul Thomas Anderson, provavelmente o melhor diretor de sua geração. Um dos poucos na história que pode dizer que nunca errou.
Aqui, o diretor impressiona pela facilidade que tem em desenvolver e envolver vários personagens, sem que em nenhum momento a trama soe bagunçada, enfadonha ou pesada.
Ninguém é deixado de lado, todos têm o devido espaço, os traumas são muito bem estabelecidos e o resultado final é uma das experiências mais humanas que o cinema já nos proporcionou.
“Magnolia” poderia ser resumido como: “o filme que questiona as coincidências da vida” ou “vinte quatro horas transformadoras”, mas isso seria uma grande injustiça. Esse é o tipo de obra que merece uma atenção a mais, uma análise especial.
As historinhas que introduzem a trama são importantes para a temática e além disso, nos surpreendem, o que é ótimo.
O terreno está preparado, então Paul Thomas joga os dez personagens na sua tão amada, Los Angeles. Há uma grande diferença aqui entre os indivíduos e as relações entre eles, o roteiro é gradativo e delicado no desenvolvimento.
Jimmy Gator é o apresentador de um quiz show que revela jovens gênios. Ele é uma figura famosa: rico, casado há anos e pai de família. De fora, o vemos assim e é exatamente isso que Paul Thomas não quer. Seu olhar é incisivo e cuidadoso, nada é o que parece. Jimmy está à beira da morte, o câncer se alastrou para os ossos e não há nada o que fazer, além de esperar. É interessante notar que a figura mais melancólica nesse núcleo é a sua mulher, Rose, que tenta apoiá-lo, mas não consegue esconder a dor.
Parece ter algo a mais dentro de Jimmy, algo que precisa ser dito, caso contrário não haveria paz em sua despedida. Ele está abatido, mas não apenas pela possibilidade da morte. É aí que entra sua filha, Claudia. Ela é apresentada como uma criatura extremamente vulnerável e os homens tiram vantagem disso. Seu rosto é pálido, sua feição não muda e seu nariz não sai de perto da cocaína. Claudia não parece ser filha de um casal tão estável, ela claramente precisa de ajuda e amor. Em poucos minutos notamos que seu buraco é fundo demais. Quando Jimmy aparece em seu apartamento para anunciar a iminente morte, a personagem reage de forma grosseira e o pai fica passivo perante aquilo. Há alguma coisa ali, que só os dois sabem.
Chegamos a figura do policial, Jim Kurring, que é de longe o integrante mais doce e honesto dessa história. Ele tem princípios e chega a ser ingênuo. Vestir aquele uniforme é motivo de orgulho, mas seu maior objetivo é encontrar uma mulher especial, o que pelo seu semblante abatido não é nada fácil. John C. Reily consegue fazer de Jim, um personagem extremamente bondoso, porém crível e relacionável, pois seus desejos são honestos e sua feição denota uma insatisfação que jamais será exposta. Claudia surge do nada, como um anjo.
Paul Thomas orquestra um encontro entre os desesperados, eles não poderiam ser mais diferentes, mas chegaram a um ponto da vida em que precisam se abraçar de qualquer forma. A visita na casa de Claudia é fantástica, pois mostra o quão humanos e genuínos são aqueles personagens. Jim esquece o motivo de sua presença quando a vê, ele fica hipnotizado e Claudia faz o máximo para fingir que não está drogada. Jim nem nota o jeito acelerado e os gestos descontrolados dela, nada disso importava. Jim sai, espera do lado de fora, fica nervoso e bate de novo na porta; Claudia treme de medo e ele a convida para um jantar. Essa cena é um exemplo perfeito de sentimentos similares, movidos por razões distintas, que no fim das contas acabam conversando.
Linda é outra, que surge como uma figura silenciosa, porém inquieta. Seu marido também está morrendo, ela passeia por consultórios e farmácias, atrás de remédios, que apenas adiarão o inevitável. Linda guarda a dor até não dar mais. Primeiro vem o desabafo: revolta, dor e tristeza se unem e não fazem muito sentido. Depois ela explica melhor o sentimento, em uma das cenas mais tocantes do filme. Linda nunca amou o marido, que era bem mais velho. Seu dinheiro a interessou, a herança era valiosa, tudo que ela deveria fazer era transar de vez em quando, mas a doença veio e aquele saco de dinheiro, de repente era algo a mais. Deitada ao lado de um homem lutando pela vida, Linda se apaixonou. Próxima dele, a personagem pode perceber o que havia evitado. Ela o traiu, o desprezou, fingiu e agora que estava próxima do grande objetivo, notou que havia algo mais importante ali. Linda não seria capaz de aceitar aquela herança, não conseguiria viver sabendo que enganou um amor tardio.
Earl representa o fim que ninguém quer ter. Sua doença é incontrolável, ele não consegue se mexer e depende de enfermeiros para tudo. Jason Robards passa a dor de um homem lidando com a própria impotência com muita delicadeza. É triste pensar em uma pessoa que viveu de tudo e termina completamente imóvel. Seu enfermeiro, Phil, é a representação máxima do afeto e da empatia. Seymour Hoffman suaviza o ambiente com seu carisma habitual, mas não consegue evitar as lágrimas, que surgem da forma mais genuína possível. Do nada, Earl diz que tem um filho e que precisa vê-lo antes de partir. Phil dá o seu jeito e chega até Frank Mackey, que é uma espécie de guia para homens desesperados. Ele prepara grandes apresentações e ensina aos seus discípulos como uma mulher deve ser tratada, como dominá-la e moldá-la. Frank é de longe o personagem mais confiante, performático e interessante. Esse era o Oscar de Tom Cruise. O que ele faz aqui é fascinante, uma atuação que varia entre extremos e em nenhum momento soa falsa ou exagerada. Sua retórica inflama os homens e impressiona qualquer um que a escute. As brincadeiras vocais ajudam na caracterização e engrandecem o personagem, que desde o primeiro minuto nos convence. Esse mar de confiança é confrontado em uma entrevista, na qual é questionado sobre as raízes familiares. Frank disfarça, solta um sorriso discreto, vai ficando sério, até que se transforma no ser mais inseguro possível. Essa transição facial que Cruise realiza é simplesmente fenomenal; a verdade incômoda vai surgindo e não há nada mais a ocultar. Aquelas frases de efeito e a performance empolgada eram apenas mecanismos de defesa, uma máscara que escondia uma dor insuportável. A direção de Paul Thomas é primordial para o efeito da cena, sua câmera parece atacá-lo. Earl era o seu pai e não foi lá dos melhores. Ele fugiu de casa, quando a mãe de Frank ficou extremamente doente e nunca mais deu as caras. O ódio em seu rosto é poderoso e fica ainda maior, quando ele descobre que Earl quer vê-lo. O reencontro é tocante. É facilmente a cena mais poderosa do filme, mais uma vez pela atuação memorável de Tom Cruise. Ele xinga o pai, deseja que sua morte seja dolorosa, chora de tanta raiva e de repente se depara com uma melancolia incontrolável. Só vendo para entender o quão impactante é esse momento.
Lembram do Jimmy e do tão falado talk show? Então, o garoto propaganda era Stanley, um pequeno gênio, que ganhava todas as edições. De longe, é engraçado e fofinho ver uma criança tão inteligente ganhando tanto dinheiro, mas de perto é desesperador, exatamente pelo fato dele ser tão jovem. Seu pai, Rick, coloca pressão, presta atenção no cheque e em nenhum momento conversa ou demonstra preocupação com o filho, que cansou daquilo tudo. Stanley não queria mais responder, só queria ir ao banheiro, quem sabe brincar com algum brinquedo. Paul Thomas é brilhante nessa cena do talk show, pois coloca dois seres extremamente fragilizados no mesmo ambiente e consegue dar ênfase a ambos. Sabemos exatamente o que se passa nas cabeças de Jimmy e Stanley, não ficamos surpresos, somos os únicos confidentes.
Donnie Smith é o último personagem, ele também foi um pequeno gênio nesse programa e agora não é ninguém. Seus pais pegaram todo o dinheiro das premiações, seu chefe o demitiu e ninguém surge como um possível amigo. Donnie quer amar, está louco para se entregar, mas está confuso demais, se perde na emoção e se afasta ainda mais. A sequência no bar é bastante esclarecedora. O personagem tenta se manter sóbrio; pede uma coca; avista o bartender, que utiliza um aparelho dentário, que o próprio estava prestes a colocar; se apaixona; se anima; vislumbra a possibilidade de se enturmar; pede uma tequila e disputa a atenção do bartender com outro sujeito. A câmera dá uma leve girada. Donnie não está legal. Ele fica bêbado, destila seus problemas para os outros e o resultado é óbvio. A seleção musical aqui é perfeita, as letras são mais reveladoras do que podemos imaginar.
Chegamos a tão icônica chuva de sapos. O que ela quer dizer? Pode ser uma manifestação do acaso, assim como aquelas apresentadas no início do filme. Talvez isso soe um pouco preguiçoso. Perceba que ao longo da obra, os número 8 e 2 são colocados discretamente em algumas cenas, e em uma delas surge o nome “Êxodo 8:2”, que segundo um versículo da Bíblia significa: “Mas se recusares a deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos”.
Na verdade, trata-se de uma intervenção divina. Após a chuva, todos parecem caminhar em uma direção positiva, os traumas estão sendo deixados de lado. O único que se manifesta explicitamente perante a chuva é Phil, por acaso, o único personagem “limpo”.
Como disse, o final é otimista: Frank vê seu pai morrer e não apresenta rancor algum. Linda parece estável. Jim é honesto com Donnie e se declara para Claudia, que finalmente esboça um sorriso.
Paul Thomas Anderson merece todos os elogios possíveis. Sua direção é impecável. Ele respeita a magnitude dos personagens, trabalha bem os ambientes, não tem pressa alguma e ainda esconde detalhes que só enriquecem a experiência.
A montagem também é fantástica. É difícil sequenciar cenas de personagens tão diferentes e aqui tudo está em perfeita harmonia, eles acabam se complementando.
O roteiro examina filhos explorados pelos pais. Temos três exemplos bem claros, mas o filme não para por aí. Os dois personagens que estão à beira da morte dividem uma semelhança notável: ambos parecem sentir muito mais os arrependimentos que qualquer outra coisa, ambos deixam a vida com dores, e até o grande final, eu diria que todos ali caminhavam na mesma direção.
Paul Thomas ainda é delicado o suficiente para adicionar elementos cômicos, que demonstram um profundo entendimento da natureza humana.
“Magnolia” é um filme tão tocante e denso, porque é sobre sentimentos que estavam escondidos há muito tempo. Sentimentos sufocantes e agonizantes, que variam entre o amor, a culpa, o perdão, a solidão, o ódio e a tristeza.
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