“Lavoura Arcaica” é um dos filmes mais singulares do cinema de um modo geral, não só do brasileiro. É uma obra poética, reflexiva intensa e sensorial que leva o espectador a lugares inesperados. A narrativa não é convencional, a montagem nega a linearidade, promovendo, assim, um retrato muito mais interessante e eficaz do protagonista.
André mora em uma fazenda com seus pais e irmãos. Como o próprio título diz, a natureza e a visão arcaica do mundo do patriarca da família não se entendem, levando a uma existência pacata e conflitante. Cada um sabe a sua posição na mesa, ninguém pode se curvar e a cabeça não pode se mexer. O pai faz julgamentos incontestáveis e proclama sermões como um pastor. Existem regras muito claras, seus filhos trabalham arduamente e não devem sair de casa, pois, segundo o líder, todo o amor do mundo está no seio familiar. O amor pode desunir, é uma força capaz de derrubar qualquer um e André parece ter sido sugado pelo “afeto” na lavoura. Ele quer amar e ser amado; quer ser o profeta de seu próprio caminho; quer experimentar prazeres humanos. O protagonista ama sua mãe, como demonstra o entrelaçar das suas mãos, no entanto, o modo avassalador do pai de domar e cuidar de seus filhos, atropela qualquer sentimento. Em “A Árvore Da Vida”, Terrence Malick diz que existem dois meios de se levar a vida: o da natureza e o da graça. A mãe claramente opta pelo segundo, sendo doce e carinhosa; em contrapartida, o pai não deixa dúvidas de sua preferência, reforçando todos os dias a sua posição opressora e dominante perante os demais.
Todos em “Lavoura Arcaica” sofrem, mas é André quem toma uma atitude. Em um ato de rebeldia, ele abandona a fazenda em direção a uma casa, um lugar acolhedor e novo. O protagonista recebe a visita de Pedro, seu irmão mais velho, cuja intenção é levá-lo de volta para a família. O que começa como um encontro aparentemente comum se transforma em um momento de revelações com um peso dramático impressionante. Pedro fala da saudade da mãe, mas é surpreendido por um André tomado pela fúria, disparando palavras frases que saem rasgando a garganta do protagonista e ferem o irmão. Mesmo quieto, Leonardo Medeiros consegue passar toda a angústia e dor ao escutar o que André tem a dizer, através de sua posição dentro do quadro e reações corporais; Selton Mello não poderia ser um contraponto melhor, abusando de verborragias e expressões intensas. André descobriu que era epiléptico e se fechou ainda mais. O ambiente escuro e desordenado em que habita salienta sua condição. O protagonista segue solitário, preso a uma existência medíocre, mesmo tendo aproveitado o tempo em que esteve longe da fazenda para viver experiências mundanas. Nada é narrado com entusiasmo, são palavras cortantes e sua aparência denota fragilidade.
Nos flashbacks, acompanhamos o embate entre Natureza/liberdade e Religião/submissão. As árvores e seus galhos são enfatizados, assim como os campos lisos, o sol, os animais e a terra. As crianças correm, sorriem e brincam. A profunda admiração de André por esses espaços reflete na sua personalidade e em momentos sutis, como quando enfia o pé na lama ao se encantar com uma dança. A capacidade do diretor Luiz Fernando Carvalho de elaborar quadros é fascinante e o auxílio da fotografia também é notável, não só pela beleza, mas por captar a melancolia da obra com honestidade. O que a montagem faz muito bem é nos tirar rapidamente dessa zona de conforto, colocando o espectador contra a parede, na mesa de jantar, onde o pai se exalta e fala sobre a união da família. Não existe liberdade e, no fundo, percebemos que o amor entre os irmãos não é genuíno, é forçado, imposto pela pregação. André se sente perdido, sozinho e é o único capaz de admitir isso. Sua última conversa com o pai é fantástica ao expor os dois lados. Enquanto um utiliza argumentos e demonstra insatisfação perante sua vida, o outro parte para uma argumentação categórica, baseada em crenças. O que deve ser priorizado? Semear ou colher? Existir ou ser feliz? Viver para si ou para os outros?
A presença de Raul Cortez é sempre marcante. Sua interpretação é rígida, precisa e fundamental para o alcance de Selton Mello.
O ponto mais polêmico e intrigante do filme é a paixão que o protagonista tem por Ana, sua irmã. Ele sabe da impureza de seus sentimentos, mas os narra com delicadeza. A sequência em que ambos consumam esse amor proibido é genial graças a montagem, que sincroniza o ato sexual com imagens do jovem André com uma pomba branca e com as terras sendo aradas. Considerando que a Natureza simboliza a liberdade, podemos dizer que o sexo entre os irmãos é um alívio, um momento raro em que dois seres humanos fazem o que querem. Mas por que ir tão longe? Essa é a grande sacada. Uma convivência baseada na autoridade e na opressão leva a reações opostas extremas. André acredita que aquilo possa ser um milagre, mas Ana enxerga apenas o pecado e se afasta em uma cena poderosa – provavelmente a que exija mais de Selton Mello. Enxergamos a ingenuidade na voz de André, que, subitamente, dá espaço a dor que já conhecíamos. O diretor não faz julgamentos, apenas apresenta para o espectador a situação em que os personagens se encontram e deixa que ele tome uma posição. Faz parte da poesia da obra, de seu texto rebuscado e de seus temas complexos. Sem uma fala sequer, Simone Spoladore oferece uma performance hipnotizante, cuja força está na sua corporalidade.
Os símbolos religiosos são muito bem colocados em tela, sendo fundamentais para reforçar a grande discussão da obra, na cena em que André encontra Ana ajoelhada pedindo desculpa pelo seu pecado. A Natureza – os sentimentos – estão ali, mas as iconografias religiosas também e cada um segue um caminho.
A trilha sonora é lindíssima e casa perfeitamente com a proposta poética do diretor.
Luiz Fernando Carvalho demonstra muito talento em absolutamente todas as tomadas desta obra prima. Seus close ups revelam intimidades inalcançáveis; a forma como ele distorce as imagens e opta por ângulos inusitados é sensacional ao expor a psique do protagonista, afinal, o filme é inteiramente dele; é interessante também notar que, muitas vezes, André aparece em segundo plano, ofuscado por Pedro ou pelo pai – figuras dominantes.
O roteiro, também assinado por Luiz Fernando Carvalho, é extremamente delicado e não foge muito de seu material base, conseguindo ser teatral e sofisticado sem soar pretensioso ou distante.
“Lavoura Arcaica” é um filme raríssimo.
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