Nikki Grace é uma atriz contratada para realizar um filme ao lado do charmoso Devon Berk, dirigido pelo ambicioso cineasta Kingsley Stewart.
O roteiro é intrigante, mas há algo que os atores precisam saber. O projeto é um remake de uma obra polonesa que não foi finalizada, pois os protagonistas foram assassinados, logo, o filme passou a ser considerado amaldiçoado por produtores e outras pessoas que conheciam a história. Lynch volta a criticar Hollywood ferozmente, iniciando pelas entrevistas e programas sensacionalistas que os atores são obrigados a participar e pela vida excessivamente luxuosa que essas pessoas levam. A própria Nikki não se sente totalmente confortável na mansão em que vive, ainda mais depois de uma inusitada visita de uma vizinha esquisitíssima. A protagonista é casada com um homem influente e Devon tem a má fama de dormir com suas parceiras de cena. Lynch prova que encenação e realidade andam lado a lado, a partir de longas sequências nas quais os dois se seduzem e só descobrimos a verdade quando as câmeras surgem (ou não).
Pegue uma personagem insatisfeita com sua vida, presa a um matrimônio opressivo, cheia de medo e culpa por ter traído seu marido, assustada por descobrir que seu novo projeto é amaldiçoado e pressionada por seus agentes e companheiros de equipe, que esperam uma performance digna de Oscar, e você terá um dos filmes mais bizarros, originais, assustadores e eficientes da história do cinema. O espectador desavisado achará que “Inland Empire” é um apanhado de cenas sem nexo e ele não estará inteiramente equivocado, no entanto, como de costume, Lynch realiza um maravilhoso trabalho ao explorar o inconsciente humano. Diferentemente de “Lost Highway” e “Mulholland Drive”, “Inland Empire” não tem limites. Lynch tinha acabado de começar a trabalhar com câmeras digitais e quis explorar o recurso ao máximo, claramente colocando, em determinados momentos, a estética e a forma à frente da trama. O que, na minha opinião, não é um erro, é apenas uma opção que prova o quão bom Lynch é dirigindo gêneros. Não há absolutamente nada na história que pudesse levá-la para um lado assombroso, mas os artifícios utilizados pelo diretor, que assume praticamente todas as funções no filme, são tão espetaculares e surpreendentes, que não conseguimos segurar o grito em determinadas sequências.
É óbvio que Lynch tem algo a dizer no seu último e talvez mais pessoal filme. A questão entre encenação e realidade chama bastante a atenção exatamente por ele ser um homem que vive sua arte diariamente.
A culpa de Nikki pela traição a transforma em uma prostituta no pesadelo e traz a encenação à tona, com um viés de realidade, terminando numa surra que leva da mulher do personagem interpretado por Devon; a relação opressiva a transforma numa mulher mais cruel e cética em determinadas passagens e completamente apática e impotente em outras, nas quais seu marido diz e faz coisas que não fazem sentido para ela, como, por exemplo, “disseram que tenho jeito com animais”, lógico, ele é um; o luxo excessivo é reduzido a ponto de Nikki viver em uma pequena e escura casa com seu marido, em uma residência repleta de prostitutas e andar pelos ambientes mais sujos e degenerados possíveis; o fato do filme ser assombrado a transporta à Polônia, onde caminha por ruas escuras e encontra os personagens do projeto não acabado; a pressão por oferecer uma performance estelar leva Nikki a uma angústia absurda, acarretando a perda de sua personalidade e a imersão absoluta em um universo onírico e surreal.
Enquanto isso, há uma jovem em um quarto assistindo “Rabbits” – sitcom de Lynch – que chora copiosamente. Não sabemos muito bem o motivo, porém as coisas ficam mais evidentes no desfecho.
A verdade é que desde o início, Nikki não se sentia confortável em lugar algum, nem perto dos amigos, do marido ou dos vizinhos. Sua casa é uma marca de algo que ela não precisa e não deseja. No entanto, seu amor por interpretar é genuíno e a obriga a viver rodeada de pessoas falsas e situações constrangedoras. Outra diferença em relação aos predecessores da “trilogia de Los Angeles” é que eles trabalham, majoritariamente, com sonhos e momentos prazerosos. Aqui, Lynch admite a atmosfera aterrorizante desde o princípio, com seus close ups e ângulos distorcidos. O inconsciente de Nikki não a leva a nenhum lugar especial, apenas constata suas terríveis dores e incertezas, tornando sua única paixão, o fazer artístico, algo aterrorizante. Lynch leva o “method acting” ao extremo, conduzindo sua protagonista de ambiente a ambiente sem nunca compreender onde está.
Existem algumas Nikkis dentro do pesadelo, como se ela estivesse presa em um inferno no qual a maior penitência é o ato constante de interpretar, e nenhuma das personagens é uma mulher minimamente contente. A montagem é labiríntica, nos guiando de uma forma enigmática, fazendo jus ao tom onírico adotado por Lynch. A porta que a protagonista abre não é a mesma que ela sai e suas personalidades se alteram entre esses cortes abruptos.
Algumas cenas são literalmente “jogadas” na trama com o único propósito de chocar o espectador, o que poderia soar pretensioso e forçado se David Lynch não fosse um diretor tão convicto de seu talento e ideias. Ele sempre experimenta, mas podem ter certeza de que nunca entrou em um set de filmagem sem ter em mente exatamente o que gostaria de realizar.
Após trocar de identidade algumas vezes, Nikki/Sue (nome de sua personagem) finalmente é esfaqueada por uma mulher que julga ter sido hipnotizada para realizar tal ato. As câmeras voltam a aparecer e, ao que tudo indica, estávamos vendo o final do filme. Entretanto, a protagonista mantém o mesmo rosto abalado e confuso, chega a se assistir no cinema, atira no Fantasma – possível representação de seus “demônios internos”, responsável pelas maiores maldades no filme, como hipnotizar pessoas a fim de seu sádico prazer e prender a tal garota no quarto -, que se transforma em uma projeção apavorante de si, beija a jovem que chorava sozinha e as duas se “libertam”. De qualquer forma, o momento é bonito, mas prova que ainda estávamos presos ao inconsciente de Nikki. Retornando à sua casa, a protagonista se vê em um sofá, em uma versão muito mais simples e alegre do que ela estava acostumada. É dessa forma que Nikki termina o filme e, nesse sentido, o desfecho, ainda que bizarro, é otimista. Lynch tira sarro de Hollywood até nisso, dando a sua obra um “final feliz”.
Na sequência em que a protagonista é assassinada, a vemos percorrer a calçada das estrelas, forma simbólica de Lynch criticar a indústria e o que ela faz com seus atores.
“Inland Empire” é uma obra enigmática, mas não deixa de ser um angustiante estudo de personagem. Pode ser considerado o filme mais “feminino” do diretor – seu horror à violência contra as mulheres, à condição das prostitutas e a sequência final são provas disso. Ainda assim, é inegável que o grande mérito de Lynch está na experiência sensorial apresentada ao espectador.
Assumo, sem medo de errar, que nunca assisti nada parecido com “Inland Empire”, que consegue a proeza de ser, simultaneamente, exaustivo e cativante. Meus olhos não desgrudaram da tela, mas as transições de emoções, ambientes e personalidades e a falta de respostas nos esgotam – no melhor sentido possível.
A trilha sonora e o design de som atormentam a alma do espectador, que toma sustos literalmente do nada. A fotografia varia perfeitamente entre os espaços. Na Polônia, temos tons congelantes e uma escuridão absoluta; Los Angeles, que nunca esteve tão decadente, suja e desglamourizada; a saturação é outro artifício que leva o espectador a se assustar e que está ligado ao medo, à violência e ao pesadelo em si; antes de adentrarmos a parte mais sombria da trama, vemos os sets e na hora que Nikki entra no seu, podemos perceber uma forte luz, sinalizando a sua paixão pela profissão.
A direção de arte trabalha essencialmente com três cores: verde – distúrbios mentais -, vermelho – perigo, medo, morte e luxúria – e azul – tensão e insegurança. A sala do psiquiatra parece um purgatório, imunda e obscura. O contraste entre a mansão da protagonista, repleta de pilastras e detalhes dourados e a pequena e escura casa que divide com o marido no pesadelo é notável. Percebam que quando Nikki entra na tal casa e nunca mais volta a ser a mesma, seu vestido é verde, assim como a maioria dos objetos. Em contrapartida, sua última roupa é azul claro, que denota pureza.
David Lynch nunca pareceu tão motivado. A princípio, um filme sobre o fazer cinematográfico, a dinâmica entre atores e diretor, “Inland Empire” se transforma em um longo e tortuoso pesadelo, cheio de significados e incrivelmente assustador. Ele abusa de planos distorcidos, imagens fantasmagóricas, ângulos desconfortáveis e close ups que invadem o rosto dos personagens. Lynch usa muito a câmera na mão, que, muitas vezes, emula o estado da protagonista ou apenas cria uma atmosfera atordoante. Seu leque de artifícios, sua capacidade de tornar algo normal em apavorante e seu controle do tempo, a fim de potencializar um susto chamam bastante a atenção e provam que Lynch é um gênio imbatível. A câmera digital dá uma textura, ao mesmo tempo, realista e fantasmagórica ao filme e Lynch, ainda “testando” o novo equipamento, exibe um domínio fascinante. Sem falar nos personagens que desenvolve, um mais bizarro que o outro.
Laura Dern me deixou boquiaberto. Espero que ela não tenha chegado ao estágio de Nikki para alcançar tamanha versatilidade. A protagonista inicia como uma mulher claramente insatisfeita com sua vida, mas completamente sã. Enxergamos o seu amor pelo seu trabalho e, gradativamente, a perdemos de vista, já que Nikki transita entre personalidades a todo instante, se torna cada vez mais insana e, por fim, vira outra pessoa – é o que acreditamos.
“Inland Empire” é o testamento de David Lynch, uma obra prima visceral, aterrorizante, inteligente e inovadora.
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