Procure um título mais propício para um filme e falhe miseravelmente. “I’m A Cyborg, But That’s OK” é uma obra complexa, que foge de rótulos, podendo, no máximo, ser considerada uma fantasia romântica. O amor é um tema difícil de se renovar no cinema e, nesse sentido, este filme é um sopro de esperança, uma experiência rara que varia entre o belo, o melancólico e o absurdo.
Eu costumo demorar a entender as propostas de Park Chan-wook, no entanto, quando embarco em suas ideias, sempre me comovo com sua capacidade artística, sensibilidade e vitalidade.
Poucos filmes trazem personagens tão solitários, magoados e ressentidos à tela. Eles não vivem na mesma realidade que nós, têm as suas próprias e precisam lidar com essas diferenças.
Young-goon passou o maior tempo de sua infância com sua avó, que dizia ser um rato e se alimentava apenas de rabanetes em conserva. Um dia, ela é mandada para um manicômio, deixando para trás a neta, sua única aliada. A protagonista “assume” para a mãe que é um cyborg, que aceita a fala com a condição de que o segredo fique apenas entre as duas. A verdade é que Young-goon realmente acredita no que fala, não à toa, corta os pulsos e conecta cabos elétricos em si. Ela vai parar em um manicômio, onde suas únicas companhias são objetos e um rádio que organiza uma espécie de sete mandamentos que devem ser meticulosamente respeitados.
Seu propósito é matar todos os de branco, a fim de vingar a pobre avó, contudo, antes, a protagonista precisa se livrar de um sentimento fundamentalmente humano: a compaixão.
No hospício escuro, as luzes chamam a atenção de Young-goon, que parece imóvel e mal consegue dizer algo quando se depara com uma pessoa. Como um cyborg, ela se alimenta lambendo pilhas e dispensa refeições. Os ambientes são, majoritariamente, brancos, combinando com os uniformes, que ressaltam a condição mental dos personagens.
Os “loucos” são cuidadosamente caracterizados, cada um tem o seu trauma e vive em seu universo particular. Alguns vestem meias e voam, outros precisam de cintas para se sentir seguros e ainda têm os que acreditam que fizeram mal a todas as pessoas importantes de suas vidas.
Entretanto, há um em especial que ganha mais espaço por ser o fio que conduz a protagonista.
Il-soon é um cleptomaníaco. Ideias, objetos valiosos, sentimentos e até mesmo a alma dos outros são opções. O personagem utiliza uma máscara que esconde o seu rosto, não por medo de se expor, mas por temer o esquecimento. Abandonado pelos pais, Il-soon viu nos roubos a oportunidade de ser visto e lembrado. Ele é atacado algumas vezes pelos outros personagens e parece gostar disso, afinal, sua presença no manicômio é, de alguma forma, importante.
Tendo que se livrar de sua compaixão, Young-goon, timidamente, pede para Il-soon roubar o seu sentimento para que ela possa matar os médicos que aprisionaram sua avó. A protagonista sempre se pergunta sobre o sentido de sua existência. Ser um cyborg não é suficiente, deve haver algo a mais. É interessante perceber que a compaixão indesejada por Young-goon é transferida para Il-soon, que passa a investigá-la com um interesse maior que o combinado. Seus esconderijos e narrações denotam um forte carinho, no entanto, se engana quem pensa que este é um romance linear, em que as coisas rapidamente se encaixam.
Estamos falando de seres mentalmente perturbados. O roteiro de Chan-wook prova que sentimentos não podem ser impostos, são naturais, simplesmente acontecem. Considerado anti-social, incapaz de amar e esquizofrênico, Il-soon é, provavelmente, o personagem mais interessante da história. Ele é tão solitário e esquisito, que quando é “contratado” para roubar algo impossível, se apaixona de tal forma que não enxerga nada além da protagonista. Escovar os dentes é o seu remédio para a ansiedade e o nervosismo. O fato de seu amor se considerar um cyborg o machuca, pois, lentamente, com a falta de alimentação, Young-goon se autodestrói. O que é tão belo nesse filme, é que o personagem não pressiona, nem força a protagonista a fazer algo que não quer. Il-soon embarca em sua fantasia, elimina sua compaixão, adicionando sentimentos ainda mais poderosos e a transporta para uma zona de conforto capaz de colocá-la em contato com uma realidade única, na qual somente os dois sobrevivem.
Ele finge criar dispositivos que possibilitam uma alimentação saudável. Na cena mais bonita do filme, Il-soon abraça, simultaneamente, suas engrenagens robóticas e seu corpo. Chan-wook fala sobre empatia, o que significa amar e proteger alguém especial.
O diretor admira o imaginário e transforma a sua obra em um conto sobre jovens perturbados que vivem em seu mundo particular. Se na realidade a câmera mal sai do manicômio, no fictício, as paisagens são verdes e a fotografia é alaranjada, realçando o romance entre os dois. Não à toa, o único beijo ocorre quando a protagonista está com a cabeça invertida e os pés sobrevoando o chão. É como se, após tantos anos de esquecimento, dor, vazio e solidão, os dois tivessem encontrado algo de diferente, algo que os fizesse flutuar. Chan-wook, famoso por orquestrar sequências violentas, aproveita a oportunidade que tem, optando pelo contraste entre a beleza da fotografia e a tranquilidade da paisagem com o sangue e o ódio contido em Young-goon, que se transforma em um cyborg assassino. Além do efeito surpresa, o diretor subverte a situação, colocando o espectador como um observador longínquo através de um plongée. As marcas de sua direção estão bem presentes. Os close-ups buscam o desconhecido dentro de almas desesperadas; os longos planos dão ao filme um frescor e uma certa unicidade, já que, invariavelmente, ele opta por movimentos inesperados, que conversam com a natureza impulsiva dos personagens; a câmera que circula em volta da mesa também retorna. O que mais chama a atenção e que diferencia esta de suas outras obras, é a sensibilidade para lidar com um tema diferente. Não é qualquer diretor que termina um filme daquela forma, ao mesmo tempo, simbólica e lindíssima.
Assim como Il-soon, Young-goon escova os dentes, reforçando uma união que surgiu da dor, da insegurança e da impossibilidade de ser humano.
Gosto também do momento em que Il-soon enterra a imagem de sua mãe, que representava a solidão em sua vida.
A montagem talvez seja o ponto a ser mais apreciado no filme. Ela é responsável por rimas visuais belíssimas entre passado e presente; realidade e ficção. O uso de freeze frames é perfeito ao pontuar certas situações e a Split Screen, principalmente na cena do telefone sem fio, é fundamental para aproximar o casal. Além de adicionar elementos interessantes à narrativa, a montagem não é necessariamente intrusiva, o que é ótimo.
A trilha sonora é impecável, dita a trama com uma elegância ímpar.
Lim Soo-jung oferece uma interpretação delicada, especial e sofrida. Sua personagem impressiona pela fragilidade – física e emocional. Young-goon anda pelos cantos, conversa em silencio com objetos, chora e quase morre. Da mesma forma, a atriz apresenta uma vivacidade incrível ao se alimentar e se apaixonar, principalmente nas sequências imaginárias. Não há exageros, a dor ainda é muito forte, sua dificuldade ao falar com a doutora sobre si é palpável, contudo, as fases são notáveis.
Rain dá vida a um personagem igualmente doído, porém muito mais sorrateiro e expressivo. Das máscaras e da estranheza, surge um jovem preocupado, atencioso e romântico. Está tudo em sua performance, principalmente na forma como seu corpo se conecta ao de Young-goon. Os dois atores são charmosos e carismáticos, mas o que impressiona mesmo é o alcance de ambos.
“I’m A Cyborg, But That’s OK” não é o romance que você espera que seja. É esquisito, pode demorar a te capturar, mas é, sem dúvida alguma, um dos mais sinceros, belos e originais dos últimos vinte anos.
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