Skip to main content

A sala decadente, com paredes em tons frios, mesas pequenas e o trabalho mecanizado dizem muito sobre o mundo que estamos adentrando. Henri trabalhou durante quinze anos na Central de Abastecimento de Águas, mas nunca foi oficializado como empregado e é estrangeiro, logo, após a privatização do órgão, é o primeiro a ser demitido.

Sua casa é uma extensão da claustrofóbica sala e das ruas londrinas abandonadas. Em determinada cena, os, até então, colegas, riem em um canto, enquanto Henri se mantém ilhado e cabisbaixo.

O protagonista não tem amigos, não é bem quisto no país em que vive e repete o mesmo cotidiano, não por prazer ou superstição, mas por ser uma figura extremamente vazia e deprimida. Seu emprego era miserável e enfadonho? Sem dúvidas, todavia, dentro de existências banais, um mínimo fio é suficiente para te conectar com a realidade. Não havia mais fio, sua vida era, oficialmente, “um nada”.

Pela primeira vez, Henri toma uma decisão importante: se matar. Ele fracassa – essa é a sua sina -, então decide contratar um especialista.

Aki Kaurismäki tem uma raríssima capacidade para extrair humor de situações trágicas. Ver alguém enfiar a cabeça em um forno não deveria ser engraçado, contudo, há uma certa comicidade no ar, que não surge graças a trilha sonora ou trejeitos do ator, mas porque o cineasta adota um tom tão desesperançoso e taciturno, que soa irreal. A partir de suas peculiaridades nórdicas, ele desperta o espectador para questões sociais e humanas fundamentais.

O momento que sintetiza o toque característico de Kaurismäki é aquele no qual o protagonista vai a um pub e encontra o assassino de aluguel, que pergunta: “de quem você quer se livrar?” e Henri entrega uma foto sua.

Cineastas capazes de criar lógicas e universos únicos merecem respeito – o absurdo é plenamente crível.

“Farei o meu melhor”, diz o sujeito responsável pelo serviço. Cansado de esperar, o protagonista deixa um bilhete na porta de casa, avisando que foi a um bar – a cumplicidade com o “leal colega” é incorruptível. Ele bebe e fuma dois maços de cigarro, porém não sente efeito algum. Em um plano conjunto, vemos que uma parede o separa do restante das pessoas no local. Eis que surge Margaret, uma vendedora de flores, por quem Henri instantaneamente se apaixona. As rosas simbolizam o amor que lhe foi negado a vida inteira.

“Não gostavam de mim lá”, afirma o protagonista, justificando sua emigração da França para a Inglaterra. Repentinamente, sua casa se transforma numa zona de perigo, Henri passa a sentir medo e emoções naturais. Que tipo de pessoa foge de alguém que ela mesmo contratou? Nada é dito, nem exposto, a abordagem minimalista e delicada de Kaurismäki nos obriga a juntar certas peças. Henri se muda para a residência de Margaret, que o acorda com um roupão vermelho – cor que muda de conotação ao longo do filme.

Londres nunca esteve tão inóspita e mórbida, tomada por tons frios, lixo e ambientes abandonados. O protagonista não tem para onde correr, a cidade é um labirinto sem identidade. O assassino sabe que o contratante desistiu do trabalho e que não exige o reembolso, mas quer terminar o serviço. Por pura maldade? Kaurismäki não cria personagens unidimensionais, tudo e todos servem à sua concepção de universo.

Ele tosse sangue repetidas vezes e descobre que tem um câncer terminal. O assassino não aceita a possibilidade de se deitar numa cama e observar os meses passarem. A busca por uma ocupação é relacionável, ressalta o pavor que temos em assumir um compromisso com a inexistência. “Por acaso”, o que mantinha o personagem na ativa, era a matança. Kaurismäki humaniza o assassino de vez em uma conversa que ele tem com sua filha, praticamente uma despedida.

Seu roteiro é maravilhosamente original, quando achamos que temos tudo sob controle, Henri é confundido por dois bandidos procurados. A cena é comicamente genial, o silêncio e a reação lenta do protagonista fogem do lugar comum. Sua imagem na capa do jornal e uma carta, na qual diz que se jogará na frente de um trem destroem a pobre Margaret.

Por que ela embarca nessa jornada? Por que se envolve com um homem procurado por um assassino de aluguel? As rosas não simbolizam seu estado de espírito, apenas a esperança de sair do buraco. Na sequência em que o “antagonista” invade sua casa, as flores na mesa estão apodrecidas, refletindo seu medo – finalmente havia construído algo.

A frase que basicamente define a filmografia de Kaurismäki parte de Margaret: “a classe operária não tem pátria”. As pessoas são objetos em um sistema que preza pelo descarte e pela padronização. A engrenagem domina os seres humanos, as coisas se invertem, dando espaço a angústia, depressão, ansiedade e pensamentos negativos. A Londres fantasmagórica de Kaurismäki é um personagem à parte – engole todos os outros.

O clímax desse jogo de gato e rato acontece justamente em meio ao lixo e à escuridão. A imagem dos dois frente a frente é poderosa.

A posição deles no quadro indica de maneira sutil quem sairá dali vivo – um tem uma parede em sua frente, o outro, o espaço aberto.

-Morrerei em poucas semanas.

-Sinto muito.

-Por que?

-Irá me tirar daqui.

-Não gosta de estar aqui?

-Não, sou um perdedor.

A combinação de cores em determinados ambientes – amarelo, verde e vermelho na lanchonete, por exemplo – traz uma harmonia digna de pinturas ao filme, entretanto, não se enganem, os tons escolhidos apenas salientam a tristeza inerente ao mundo concebido por Kaurismäki.

Falando nele, há uma panorâmica realizada a partir de um plano geral que explora perfeitamente Londres e sua vastidão azul.

O elenco está impecável, muitíssimo bem conduzido pelo diretor. Jean-Pierre Léaud, que impressionava pelo carisma nos filmes de Truffaut, aqui, parece um zumbi. Sua palidez se complementa com o semblante inexpressivo e a entonação monotônica. Palavras importantes saem de sua boca com uma estranha passividade.

“I Hired A Contract Killer” é uma obra prima de um cineasta que merece mais destaque.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!