Apenas Stanley Kubrick poderia ter dirigido “2001: Uma Odisseia No Espaço”, apenas Martin Scorsese poderia ter dirigido “Taxi Driver”, apenas Woody Allen poderia ter dirigido “Manhattan” e apenas Spike Lee poderia ter dirigido “Do The Right Thing”. Poucos filmes conciliam tão bem estilo e conteúdo. Lee apresenta um domínio impressionante e acerta ao optar por uma abordagem ampla e empática. O ódio e o preconceito não partem de um lado específico, mas do ser humano de modo geral, seja ele negro, italiano, coreano, latino ou branco. Não existem heróis e vilões, todos fazem a coisa errada e, em vez de abraçarem as diferenças e respeitarem outras culturas, optam por um convívio baseado no confronto e na opressão.
O filme nunca se torna pesado, Lee escreve diálogos orgânicos, explora personagens interessantes e relações além do preconceito – em sua grande maioria envolvendo o personagem interpretado pelo próprio diretor. Mookie é um irmão ciumento, um marido e um pai distante e um trabalhador um tanto quanto preguiçoso.
A forte iluminação e as paredes vermelhas transformam o pequeno bairro no Brooklyn em um inferno escaldante. O suor é gradativo e chega ao ápice no clímax, marcado pela brutalidade e pelo absurdo.
A maioria dos personagens não tem muito o que fazer, então ocupam a mente com pensamentos condenáveis. Os três amigos sentados na calçada riem do péssimo inglês dos coreanos e reclamam do espaço ocupado por eles. Os negros se sentem donos do bairro, entretanto, se engana quem pensa que a covardia acontece apenas entre raças distintas.
Na esquina, Sal abre sua pizzaria todos os dias, da qual se orgulha de ter construído sozinho, com seus dois filhos. Vito é mais aberto e gosta da companhia de Mookie, em contrapartida, Pino é um ser desprezível, consumido por um ódio inexplicável. Ao ser perguntado sobre seus ídolos no esporte e na arte, ele não hesita ao escolher negros, porém salienta que Prince, Eddie Murphy e Magic Johnson são “mais que negros”. Mookie é um sujeito sereno, cujos dilemas são tantos, que ouvir absurdos desse tipo não o atingem. O mesmo não pode ser dito de Buggin Out, que vê na parede da fama da pizzaria uma afronta pessoal, afinal, só estão penduradas fotos de celebridades ítalo-americanas. “Abra o seu negócio e coloque a foto de quem você quiser”, responde Sal, cujo raciocínio é pragmático.
A grande questão é: custava colocar a imagem de um negro famoso? Não, no entanto, há de se elogiar a integridade do dono da pizzaria, que não abre exceções para raça qualquer, enfatizando a origem de seu estabelecimento e demarcando território em uma área majoritariamente afrodescendente. Buggin Out não alivia e decide organizar um grande boicote à pizzaria. O único que se junta ao revoltado é Radio Raheem, uma das figuras mais icônicas da carreira de Spike Lee. O nome é autoexplicativo, Raheem anda pelas ruas com um enorme rádio que toca apenas “Fight The Power”, música símbolo entre os negros. Ele nunca abaixa o volume e não se impressiona com olhares, mas ao entrar na pizzaria é obrigado por Sal a desligar o rádio, o que também é visto como uma atitude violenta.
Eu não quero enaltecer ninguém nessa história, no entanto, na minha opinião, é nítido que Sal é o personagem mais complexo e interessante. Seu amor pelo estabelecimento é visceralmente genuíno, assim como o seu carinho pelos clientes, mesmo carregando traços do racismo histórico e estrutural. “Essas pessoas cresceram comendo a minha comida”. Em uma sequência espetacular, Pino diz que seus amigos não o respeitam e que gostaria de se mudar. Sal, sem entender de onde veio aquele ódio todo, é sincero: “eles não são seus amigos, caso fossem, não diriam isso”. O protagonista – acho que podemos chamá-lo assim – é atencioso com seus clientes, principalmente com a irmã de Mookie, que morre de ciúmes.
Lee não está interessado em uma trama específica, mas em apresentar o preconceito por diferentes óticas, estabelecer dinâmicas realistas e experimentar como diretor.
O “prefeito” é uma figura interessante. De paletó e chapéu, ele percorre o pequeno bairro a fim de realizar boas ações. Não sabemos o seu verdadeiro nome, nem onde mora, apenas apreciamos os seus gestos.
A relação entre Pino e Vito é de dominância. São irmãos que sabem suas posições dentro de uma hierarquia e agem de tal forma. Vito não pode ter uma opinião diferente sem ser rapidamente bombardeado por Pino, que utiliza uma retórica segregacionista perigosa.
O filme tem excelentes tiradas cômicas e o grande responsável pelo humor é Mookie – sua relação conturbada com Tina e seu desleixo com o emprego.
Em determinado momento, Lee foge do naturalismo, pega cinco homens de raças distintas, utiliza um travelling frontal e os deixa destilar todo o ódio que sentem pelo outro. Além de extremamente bem conduzida e montada, a sequência reforça a proposta do diretor.
Ele é a grande estrela do filme. Aos trinta e dois anos, Spike Lee realizou uma obra prima definitiva que deve ser vista por todo estudante de cinema. O confronto e o caos são criados através de ângulos holandeses, plongées e contra-plongées, que colocam certos personagens em uma posição de dominância e outros, acuados. A montagem enérgica é igualmente fundamental na abordagem de Lee.
O diretor também usa a câmera na mão, conferindo um efeito cru e dinamizando certas cenas. Ele sabe quando alterar a velocidade da imagem, como, por exemplo, na cena em que os policiais e os três amigos negros trocam olhares enojados.
Os figurinos são importantes para caracterizar e diferenciar os personagens, cada um pertencente a sua “tribo”. Enquanto Vito opta por uma camisa preta, Pino está sempre de branco.
Há um rápido momento no qual a câmera foca nos jornais que relatam a altíssima temperatura e, em seguida, mostra imagens de mulheres esfregando gelo no rosto e jogando água no corpo. Um trabalho de montagem espetacular.
As clássicas mãos de Radio Raheem – amor e ódio – parecem ter apenas um lado. São inúmeras as vezes em que vemos os personagens dizendo coisas como “nós” e “eles”. Quando Raheem fala que não consegue gostar de nada além de “Fight The Power”, admite que tem a cabeça fechada demais para escutar e compreender as demais culturas.
A trilha sonora conversa diretamente com a temática, optando por diferentes estilos. Interpretado por Samuel L. Jackson, o DJ local é um homem pacífico e animado. Ele cita vários artistas negros, todos talentosos e musicalmente distintos.
Giancarlo Esposito faz de Buggin Out um sujeito cuja revolta é digna, no entanto, seu jeito agitado e vingativo o levam a escolhas e atitudes péssimas.
John Turturro é um talento nato. O ator interpreta um personagem repugnante com propriedade, deixando claro o seu ódio de uma forma genuinamente confusa, que o torna ainda mais detestável e crível.
O grande destaque é Danny Aiello, que caminha entre extremos, se exalta e demonstra empatia com a mesma intensidade. Vemos um pai preocupado, um homem que ama seu negócio, que se importa com as pessoas que gostam de sua pizza e, que, nem por isso, evita o ódio.
Atualíssimo e único, “Do The Right Thing” é, sem dúvida alguma, o filme mais importante da carreira de Spike Lee.
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