“Deus Sabe Quanto Amei” é um filme imprevisível, que escolhe caminhos que a Hollywood em sua época de ouro costumava evitar. Vincente Minnelli opta por uma direção generosa, revigorante e discreta que, tirando determinados momentos – o clímax, o último plano e uma cena envolvendo um beijo -, chama a menor atenção possível, incumbindo aos atores essa função.
Esse não é bem um filme sobre trama, é sobre personagens, as escolhas que fazem para suas vidas e a forma como lidam com sentimentos poderosos. É triste e engraçado na mesma intensidade, absolutamente relacionável e excepcionalmente bem escrito.
Dave acabou de voltar do exército. Ele era um escritor, mas desistiu da carreira por não enxergar talento em si. Seu irmão, Frank, é uma espécie de cidadão exemplar na pequena cidade em que vivem. Sua casa é enorme, sua família é completa e seu emprego lhe proporciona uma boa fortuna. Frank teme pela chegada do irmão, cujo temperamento forte poderia atrapalhar sua imagem. Dave é como o quarto de seu hotel: desleixado, blasé e confuso. O protagonista usa o sarcasmo e sua inteligência para disfarçar suas fragilidades. O roteiro é bastante generoso ao lhe fornecer falas que ressaltam a sua natureza.
Quando é perguntado sobre beber whisky às dez da manhã, ele diz: “não olho para o relógio” e quando alguém enaltece um de seus livros, Dave é categórico:
-Um belo estudo sobre rejeição.
-Sim, foi rejeitado por quarenta e duas editoras.
As coisas mudam no instante em que o protagonista conhece Gwen, professora e crítica literária, que admira o seu trabalho. Dave tem as palavras na ponta da língua e as diz. Já esteve com “mulheres fáceis” e agora experimentava algo diferente. Gwen não era apenas difícil, era tão inteligente quanto Dave e é fascinante observar a dinâmica entre os dois.
“Bons escritores sentem mais profundamente que nós”, diz Gwen para os seus alunos, citando grandes autores, enquanto pensa no protagonista. Ela é sensível e percebe através dos textos de Dave, um homem apaixonado e talentoso, que se autodeprecia e se sabota ao se comportar como um malandro mulherengo.
Ele muda, até para de beber e Gwen admite que o ama, o que nem sempre é suficiente – pelo menos é isso que o roteiro nos diz. Seria impossível confiar em um sujeito conhecido por brigar na rua, sair nas capas de jornais e passar a maior parte de seu tempo apostando. Nós, como espectadores, temos a capacidade de ver o que outros personagens não têm. Dave chega desarrumado e bêbado, a encontra, se declara, faz promessas, se arruma e a beija. Se transformou em outra pessoa, uma que entende o peso do amor e da solidão, no entanto, isso não é suficiente para Gwen, que, mesmo atraída, não se sente segura ao seu lado.
Não há julgamentos, apenas pessoas que expõem seus sentimentos da forma mais honesta possível. Deixar o nosso herói sozinho não faz de Gwen uma vilã, muito pelo contrário, a torna mais humana e menos previsível.
Sem seu grande amor, Dave decide viajar com Bama e Ginnie.
O primeiro é um malandro apostador que, apesar de ser um amigo confiável, é excessivamente insensível e não tira o chapéu nem para dormir. A segunda é uma das criaturas mais puras, sinceras e ingênuas que o cinema já criou. Ginnie é completamente apaixonada por Dave, mas se encaixa no perfil de “mulher fácil”, além de não ser um primor intelectual. Entendemos o porquê do protagonista não olhar seriamente para ela, afinal, Ginnie representava o lado oposto de sua verdadeira paixão.
Em determinada cena Dave lê a sua nova história – inspirada em Gwen – para a pobre coitada e faz perguntas sobre os personagens e a trama. Ginnie sabe que não é capaz de desenvolver algo profundo e, em sua genuinidade diz uma das coisas mais belas do filme: “Não entendo a história, mas isso não quer dizer que não gostei. Eu te amo e não te entendo”. Isso desarma Dave, que conclui que a solidão era uma opção, já que, à sua frente, estava uma mulher que o amava como ninguém, sem barreiras, preconceitos ou dificuldades. A vida é sobre encontrar a felicidade ou alguém? É uma pergunta complexa e o roteiro não dá respostas ao espectador, que espera por um desfecho convencional e se depara com um tour de force, extremamente bem montado e poderoso em suas emoções.
O filme não fica apenas no quarteto, valorizando também Frank, que admira tanto a imagem que construiu de si, que esquece o sentido da vida, permitindo que ela se transforme em um retrato imutável de uma família que talvez já tenha sido feliz e, atualmente, cumpre apenas um papel social. Frank mal olha para a esposa e quando tenta ser carinhoso, é rapidamente cortado, o que o leva a sua jovem secretária. Aos nossos olhos, seu caso é apenas uma saída para um matrimônio em frangalhos, contudo, para sua filha, Dawn, é uma facada no peito.
Em vez de olhar para o próprio umbigo e perceber que se preocupou apenas com a capa, afastando sua mulher e sua querida filha, Frank tenta culpar Dave pela fuga de Dawn. Ele é egocêntrico, hipócrita e falso. Sem falar na secretária que, repentinamente, se vê dentro de um furacão.
“Some Came Running” pode parecer um drama existencial e, de certa forma é, entretanto, não deixa de ser uma comédia deliciosa, carregada por um roteiro inspirado e atores talentosíssimos.
Frank Sinatra prova novamente que não era apenas um cantor genial. Como ator, ele demonstra um domínio cômico impressionante e é por isso que o que mais me impressiona em sua composição é a carga dramática. Sinatra transita perfeitamente entre o homem apaixonado e transformado, o apostador solitário e o sujeito que aceita o seu destino, demonstrando um falso ânimo.
Dean Martin não tem o mesmo impacto que o seu companheiro de profissão, no entanto, sua presença é inegavelmente cool e proporciona boas risadas.
Shirley MacLaine faz de Ginnie uma jovem perigosamente frágil e amável. A atriz oferece uma performance riquíssima que leva o espectador a mudar a impressão que tem sobre sua personagem diversas vezes. Talvez ela fosse um anjo, vestida de branco, fazendo de tudo para alegrar Dave.
A trilha sonora varia entre batidas tensas e melodramáticas. A fotografia, em suma, aposta em tons escuros, que reforçam o vazio na vida dos personagens. A sombra é utilizada no primeiro beijo entre Dave e Gwen, tendo a conotação de algo secreto/indevido, já o vermelho aparece na sequência final por motivos óbvios.
A direção de arte trabalha bem os espaços, principalmente o quarto em que o protagonista se hospeda – reflete sua estado emocional no momento – e a mansão de Frank, que salienta o seu desejo por manter uma imagem impecável.
“Some Came Running” é uma obra que reforça a versatilidade da antiga Hollywood e que trata a solidão com a complexidade que o tema exige.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!