É estranho dizer isso em uma semana baseada no Halloween, mas “Let The Right One In” é um dos filmes mais belos e sutis que já assisti. A violência gráfica está presente, porém, diferentemente da maioria dos filmes do gênero, ela não se origina do ódio ou da perversidade, mas de uma necessidade.
Eli não gostaria de pular nas pessoas e destroçar seus pescoços, no entanto, essa é a sua natureza. Ela é uma vampira, precisa de sangue e diz ter doze anos há bastante tempo. Seu “pai” não suporta mais o vazio de sua vida e decide se matar. Em determinado momento, uma humana é transformada e, ao invés de forte e poderosa, fica fraca e depressiva, optando pelo mesmo destino do pai de Eli.
Começo assim o texto, para deixar claro que “Let The Right One In” dota esses seres mitológicos de uma dor insuportável e de uma existência solitária, mórbida e desesperadora. A estilização encontrada em filmes americanos não está presente nessa obra prima sueca, que, logo de cara, situa o espectador. As paisagens são geladas, os prédios igualmente tristes e a fotografia não foge de paletas cinzentas.
Oskar não é um vampiro, mas é pálido como um e sofre bullying na escola. O diretor o apresenta de costas em relação ao restante da turma, que é vista fora de foco. Um grupo de alunos faz de tudo para infernizar a vida do pobre coitado, chegando até a encurralá-lo e agredi-lo fisicamente. Oskar idealiza cenários nos quais os machuca e controla a situação. Seus pais são separados e, mesmo tendo pouco tempo de tela, demonstram fragilidades notáveis – a mãe, pelo olhar melancólico e o pai, pelo excesso na bebida.
Oskar é apenas um jovem meigo e solitário, que gostaria de ter amigos, mas se contenta com o que tem – quase nada. Uma noite, ele encontra Eli, que, surpreendentemente, diz algo e o trata como um ser humano. Ambos são inseguros, a tensão nos diálogos é palpável e também pode ser reparada na disposição dos corpos em tela. Eli fala que não pode ser amiga de Oskar, que aprende código morse para se comunicar através de toques na parede, já que eles são vizinhos.
Oskar empresta um cubo mágico para Eli e sorri quando o encontra solucionado. Ela o deixa em cima de uma mesa, mas o fato de ter “perdido” tempo mexendo em seu brinquedo o deixa feliz. “Let The Right One In” é sobre ir à escola, suportar o insuportável, apenas existir e, repentinamente, descobrir alguém igualmente sozinho e desesperado.
-Quando você nasceu?
-Não sei.
Oskar percebe que não é o jovem mais solitário da cidade, o que é reconfortante. Ele olha para ela não acreditando no que está vendo. É uma relação complexa, podendo parecer fria, silenciosa e indiferente, sendo, na verdade, rara e honesta. Eli só pode se alimentar de sangue e aceita, por compaixão, um doce oferecido por Oskar. Nesse momento, a montagem apresenta um excelente timing, cortando para um plano no qual Eli vomita escondida.
Ela tira a roupa e se deita na cama dele após ter matado uma pessoa.
-Isso é nojento?
-Não
-Oskar, eu não sou uma garota.
-Mas você quer ficar comigo?
“Let The Right One In” não possui nenhum tipo de apelo sexual, afinal, estamos falando de crianças de doze anos. O que chama a atenção é exatamente a ingenuidade do primeiro amor. Encontrar uma pessoa especial e se deparar com sentimentos, até então, desconhecidos. Existem vários filmes com essa temática, mas nenhum com esse tipo de personagens.
Normalmente, o vampiro fica aprisionado a um corpo, entretanto, evolui mentalmente e isso não acontece aqui. É uma escolha certeira, pois coloca os protagonistas em pé de igualdade. Oskar é mais ingênuo, demora a desconfiar da verdade por trás de Eli. Ele chega a ser grosseiro, sente medo e julga o fato dela matar pessoas para sobreviver. Ela precisa ser convidada para entrar na casa dos outros e Oskar brinca com essa condição, nos levando a uma cena absolutamente devastadora, que muda a percepção do garoto. Eli não era uma psicopata, era uma sobrevivente angustiada.
Os dois passam por fases e fortalecem o laço. Em uma trama paralela, um sujeito que havia perdido a esposa e o melhor amigo vai atrás de Eli e só não a mata pela perspicácia de Oskar, que fecha os olhos e não assiste ao restante da cena, assim como o espectador, que vê apenas o vermelho na porta.
Suja de sangue, ela o abraça e o beija, ressaltando a genuinidade daquele romance e a união dos personagens. Os últimos dez minutos reservam momentos, simultaneamente, tensos, violentos e lindíssimos. Grandes diretores e roteiristas têm a capacidade de transformar algo grotesco e bizarro em poesia. E a última cena? Não há diálogo, apenas batidas, mas sabemos perfeitamente o que elas querem dizer.
O diretor Thomas Alfredson merece aplausos em todas as esferas. Sua mise en scéne é impecável, permitindo que o espectador compreenda geograficamente o estado emocional dos personagens. Ele varia entre planos fechadíssimos, que exprimem o desconforto de Oskar na escola, com planos gerais que exploram o espaço, o vazio presente na cidade e a raridade de certas situações, como o passeio divertido com o pai. No início, Alfredson usa as paredes e as janelas para mostrar a distância entre Oskar e Eli, que, a princípio, não poderiam se encontrar. Ele também se sai muito bem nas cenas mais tensas, estendendo passos e movimentos. Quando Oskar finalmente bate no seu “inimigo”, o diretor opta por um contra-plongée, colocando-o numa posição de imponência.
No entanto, dentro de escolhas tão acertadas, diria que o que mais me encantou foi a sua sutileza para criar momentos verdadeiramente doces e românticos, sem serem forçados ou inapropriados. São tantos, que poderia escrever um texto citando cada um.
A montagem, além do timing, é especialmente marcante na sequência final, na qual ela potencializa a tensão, deixando o espectador na ponta da cadeira.
A trilha sonora é gentil e delicada. São melodias sofisticadas e pouco intrusivas.
Kåre Hedebrant e Lina Leandersson oferecem interpretações tocantes. Os dois trabalham bem as sutilezas – olhares, pequenos gestos e a entonação –, tornando a experiência genuinamente gradativa. Hederbrant impressiona pela ingenuidade – melhor conotação possível – e Leandersson, pelos lapsos de brutalidade.
“Let The Right One In” é um romance sobre almas doloridas e solitárias. Uma obra prima originalíssima que passeia entre gêneros e encanta pela sensibilidade dos realizadores.
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