As pessoas discutem, os programas televisivos alertam e a polícia ataca um conjunto habitacional. O caos e o clima de incerteza são intoxicantes. A cidade parece uma zona de guerra e os rostos apavorados, diante de zumbis famintos, marcam uma realidade apocalíptica. Não existem espaços convidativos, a escuridão faz parte da situação atual e Romero, através de planos fechados e de uma montagem ativa, explora a animosidade das brigas. Tudo em “Dawn Of The Dead” é maior do que em “Night Of The Living Dead”. No filme de 1967, somos jogados naquela casa quase de imediato, sem termos a chance de entender a situação ou de nos interessar pelos personagens. Aqui, antes de adentrarmos o cerne da trama, temos noção da desesperança que ronda a sociedade e somos apresentados ao grupo central.
Stephen e Fran trabalham num canal de notícias. Eles decidem roubar um helicóptero e fugir para um lugar mais seguro. Peter e Roger, agentes da SWAT, se juntam ao casal. As obras de Romero são repletas de subtextos. Existe uma diferença entre sobrevivência e diversão. Enquanto o quarteto sobrevoa, vemos alguns caipiras bebendo e atirando. Naquele momento, o fetiche pelo gatilho era válido. Sem muitas opções, eles se estabelecem num shopping center abandonado.
Em “Dawn Of The Dead”, diferentemente de “Night Of The Living Dead”, os personagens, além de carismáticos, são donos de personalidades próprias. Existe um senso de progressão na relação entre eles e Romero separa espaço para dramas pessoais. Peter e Stephen, inicialmente, não se dão bem; Fran está grávida e, apesar de escutar a palavra aborto, nem pensa nessa possibilidade. Romero utiliza o shopping para variadas finalidades. Ele adota uma abordagem típica de “hangout movies”. Os personagens se divertem, se conhecem melhor, circulam despreocupadamente pelo ambiente e matam zumbis com uma facilidade cômica. Por outro lado, o shopping, símbolo máximo da cultura do consumo, é apropriado para uma crítica ao capitalismo – se todos vão se aniquilar, que o fim dos tempos aconteça no local que Romero mais despreza e enxerga como um vilão natural.
O olhar maravilhado e ganancioso dos personagens é notável. A fartura os leva a comportamentos um tanto infantis, o que acaba sendo fatal. “Esse lugar pode ser uma mina de ouro para a gente”. “As chaves do reino”. Entre o “hangout movie” e o comentário político, Romero organiza sequências tensas e que impressionam pela sanguinolência. O uso de montagem paralela eleva o suspense, deixando o espectador preocupado com um personagem específico, enquanto os demais se aproximam ou não podem fazer muita coisa. São inúmeras as vezes em que eles são quase mordidos e Romero conduz essa angústia com um sadismo apropriado. Em determinada cena, Stephen fica sozinho numa sala de máquinas tomada pela escuridão. Os cortes e a câmera do cineasta emulam a desorientação do piloto do helicóptero, que não entende a geografia do recinto, está com a visão prejudicada e não tem noção da localização do zumbi. Romero não precisa de muito para deixar o espectador na ponta da cadeira; a considerável superioridade numérica dos mortos vivos já é suficiente.
A trilha sonora também entra nessa equação, variando entre melodias lúdicas e temas enervantes.
Um dos grandes méritos de “Dawn Of The Dead” é fazer com que nos preocupemos com os personagens, que, graças a uma narrativa ampla, que não se limita a um único tom, abandonam a posição de meros peões. A dinâmica entre Roger e Peter é entusiasmante e prazerosa de se acompanhar. Se em “Night Of The Living Dead” eu quase me vi torcendo para que todos fossem atacados, aqui, quando Roger é mordido, a sensação que tive foi de tristeza profunda. A transformação gradual, a qual ele é submetido, é dura e brilhantemente conduzida por Scott H. Reiniger. Falando nos zumbis, o trabalho de maquiagem e os efeitos práticos seguem impecáveis – e a adição do gore exige uma boa dose de inventividade por parte dos envolvidos no projeto.
No desfecho, Romero ratifica seu pessimismo. Uma gangue de motoqueiros invade o shopping, dando início a uma guerra entre seres humanos. O excepcional roteiro, assinado por Romero, chega ao seu ápice ao concluir que a raça humana atingiu o fundo do poço, sendo difícil diferenciá-la dos zumbis, criaturas abobalhadas e irracionais que mal conseguem se locomover – o cineasta tira sarro disso. Se a união é impossível e o caos sempre imperará, o que sobra? Justamente num shopping, onde as pessoas se matam por promoções e produtos pouco valiosos. “Quando não houver mais lugar no inferno, os mortos vão andar pela terra”.
“Dawn Of The Dead” representa um marco na história do cinema de horror.