Os créditos iniciais são a alma de “Clockers”, um filme duro e triste sobre um problema que segue insolúvel.
As faixas de acesso restrito são quase decorações no Brooklyn. A música no fundo fala sobre pessoas em busca de uma vida, mas será que alguém envolvido nesse meio se preocupa verdadeiramente consigo? Não estariam estes jovens apenas esperando o seu fim, fazendo de seus dias um ritual, cujo ritmo é ditado pela batida policial e pelo olhar do chefão?
Strike passa os dias sentado em um banco com seus parceiros, vendendo drogas e enfrentando todo o tipo de ameaça. Ele tem uma arma, mas não tem coragem de usá-la; faz cara feia e quer parecer imponente, no entanto, seu grande hobby é brincar com trens. O Brooklyn não é o lugar para Strike, nenhum jovem deveria crescer sob esse tipo de influência e opressão. É nítido, desde o início, que o protagonista é extremamente inseguro, quer se sentir importante dentro de seu contexto e acaba se envolvendo em coisas que não deveria.
Rodney, o chefão local, é um sujeito ardiloso, que diz as coisas certas, faz os outros pensarem que são especiais e pede favores absurdos, utilizando o tipo mais baixo de chantagem. Dessa forma, ele convence Strike a matar um antigo parceiro que lhe passou a perna. O protagonista envolve seu irmão mais velho na história, um homem honesto e pai de família preso em um bairro no qual é minoria.
A trama principal surge daí: quem matou Darryl Adams?
Olhando para o corpo, os policiais fazem piadas e demonstram indiferença, afinal, aquilo era algo rotineiro.
Encarregados da investigação, Rocco Klein e Larry Mazilli formam uma dupla interessante. O primeiro trata o caso com muita seriedade, não sabemos muito bem se por curiosidade ou por uma vontade genuína de acabar com o genocídio entre os negros. Já o segundo, não poderia ser mais irônico e sarcástico. Para Mazilli, esta é apenas mais uma investigação, que, rapidamente, será esquecida, dando espaço a uma nova e assim por diante.
Strike está sempre no momento e no lugar errado, o que nos leva a considerá-lo o único suspeito plausível. Ele quer ajudar o irmão, que foi preso e mente descaradamente para Rocco, que, gradativamente, nota a picaretagem do protagonista.
Strike não é um exemplo para ninguém e se sente lisonjeado quando o pequeno Tyronne passa a tratá-lo como um herói. O garoto imita o seu jeito de se vestir, seu linguajar e ganha um videogame. Strike mostra a sua arma e ensina como usá-la, provando ser uma ameaça à Tyronne, mesmo que involuntária.
Enquanto isso, Rocco o persegue diariamente atrás de informações certeiras e só se frustra, levando-o a colocar o temido Rodney contra Strike.
Para piorar, seus colegas de praça passam a enxergá-lo como um dedo duro e sua dor no estômago só se intensifica, a ponto de fazê-lo tossir sangue.
Por que ele continua tomando aquele achocolatado podre? Por que continua vendendo drogas? Por que não pega o pouco dinheiro que tem e foge em busca de dignidade? Por que não tem carinho pela própria vida?
Os personagens de “Clockers” estão tão acostumados com palavrões, rondas policiais, violência e a iminência da morte, que acreditam que não há nada além disso. Ser um traficante é o máximo que se pode alcançar, é um trabalho comum. É por isso que “Clockers” é uma das obras mais tristes da carreira de Spike Lee. O diretor pega o seu tão amado bairro e apresenta as suas entranhas, sua sujeira, o que o torna abominável e preocupante. Não é apenas sobre Strike e seus colegas, mas sobre todo o ambiente: a segurança das famílias, as influências negativas para as crianças e a crueldade com os trabalhadores honestos.
Victor é visto como um criminoso, um sujeito que se acha “bom demais” e menospreza os “irmãos”. Tyronne se encanta ao ver a arma de Strike e mal espera pela hora de poder dispará-la. Seus colegas de sala o tratam mal por ele ser um bom aluno e não optar pelo mesmo dialeto.
O número de viciados só aumenta, assim como o de homicídios – sempre motivados por vinganças pessoais e disputas de território.
Strike é apenas uma vítima, seu amor por trens não é ocasional, é uma metáfora por seu desejo reprimido de fugir.
No fim, o espectador pode dizer que as coisas se ajeitaram, contudo, no fundo, ele sabe que nada mudou e que a solução para a onda tempestuosa de assassinatos segue sendo desconhecida.
A fotografia é primorosa, variando entre tons saturados e escuros, tirando o espectador de sua zona de conforto visual. As cores ressaltam o realismo do filme e a desesperança por parte daqueles que nem sabem o significado dessa palavra. O quarto de Strike está sempre com a luz apagada.
O vermelho, obviamente, está bastante presente na trama e dita o caminho dos personagens. A luz no rosto dos interrogados é muito mais intensa que a do policial. Lee brinca com as perspectivas – imponente e “vítima” encolhida.
A direção de arte segue um padrão similar, apresentando ambientes absolutamente precários e destruídos – os famosos “projects”.
As roupas utilizadas pelos traficantes são bastante peculiares, sendo fundamentais para potencializar o grau de realismo da obra. O mesmo pode ser dito sobre o dialeto criado por eles, baseado em gírias e palavrões. Rodney, invariavelmente, é ligado ao verde, cuja conotação é a de uma falsa segurança.
A trilha sonora orquestral é melancólica, em contrapartida, as músicas do Seal quebram o tom, dando um certo alívio e frescor ao que assistimos.
A montagem, além de dinâmica, é responsável por inserir flashbacks de forma precisa e essencial para contextualizar certas informações.
Spike Lee não demora muito para reafirmar o seu posto de mestre. Logo no início, o diretor posiciona sua câmera de maneira que não possamos escutar o que o traficante fala para o seu cliente, mantendo o sigilo e, em seguida, movimenta a câmera com uma agilidade capaz de expor toda a organização por trás do tráfico. Todas as suas marcas – apresentadas nos textos anteriores – estão em “Clockers” e são fundamentais para o efeito do filme. O “Double Dolly” surge mais de uma vez e, na sua principal aparição denota o medo de Strike. Em determinado momento, Lee utiliza o mesmo recurso para analisar uma cena por outra perspectiva, o que é extremamente inventivo.
Os close ups são habilmente usados para aproximar os personagens ou potencializar a tensão em um ambiente.
O roteiro de Lee é sutil o suficiente para adicionar excelentes pitadas de humor.
Delroy Lindo faz de Rodney um chefão sedutor, falsamente cordial, sarcástico e vingativo. Seu lado brincalhão levanta dúvidas, sua retórica é silenciosamente ameaçadora e seu lado vingativo é apavorante. Um ano após interpretar um pai delicado e gentil, Lindo oferece uma performance completamente diferente e igualmente fascinante.
É sempre um prazer ver Harvey Keitel em ação, ainda mais dando vida a um personagem tão complexo e interessante. Como todos no departamento, Rocco é preconceituoso, entretanto, a impressão final é a que ele se preocupa genuinamente com aquelas pessoas e com a violência no Brooklyn. Keitel consegue ser, ao mesmo tempo, cuidadoso e compreensivo; agressivo e impaciente.
Sua química com John Turturro é excelente, muito do humor do filme vem da dinâmica entre os dois.
Mekhi Phifer oferece uma excelente performance. Strike vive em uma verdadeira corda bamba e o ator transmite todos os sentimentos do protagonista com bastante honestidade.
Spike Lee sempre demonstrou muita preocupação em relação ao genocídio entre os próprios negros e “Clockers” é uma obra prima que grita por urgência.
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