“Chungking Express” é um belo retrato sobre solidão, melancolia e a busca incessante por amor, que, segundo Kar-wai, está em pequenas ações, num minuto específico ou em um sorriso mais expressivo. Os personagens não se beijam em suas obras, pois ele não acredita em romances, apenas na idealização.
Dividido em duas histórias, o filme é empático o bastante para desenvolver todos os seus personagens e formar uma espécie de vínculo invisível entre os quatro, afinal, todos dividem a mesma condição.
A primeira envolve o policial 223, que não aceita o término de seu relacionamento e passa os dias ligando para sua ex-namorada, que sempre o ignora. A senha de seu pager é “amor eterno”, o que ele sabe que não existe, já que faz inúmeras analogias comparando esse sentimento à produtos enlatados – ambos expiram.
Quando o caixa do supermercado lhe oferece um produto fresco, o policial exige o que vencerá no mesmo dia. Ele não quer a novidade, quer a antiga namorada. Chorar não combina com seu estilo charmoso, então sempre que sente que está prestes a desabar emocionalmente, corre até suar, assim seu corpo não terá água para fabricar lágrimas.
A outra personagem é uma traficante enigmática que se esconde atrás de óculos escuros, um sobretudo e uma peruca loira. Ela parece durona e imune à sentimentos, quando, na verdade, é tão solitária e melancólica quanto o policial. A cena em que os dois se encontram é espetacular, graças ao contraste entre as personalidades. Ele é passional, comunicativo e carente, enquanto ela é intransponível e ríspida. De qualquer forma, naquele bar, duas almas perdidas tinham uma companhia e a sequência seguinte apenas reforça isso. A moça precisa descansar e o policial a coloca em um hotel, tira seus sapatos delicadamente e assiste TV até o amanhecer. A fotografia, que investia em cores frias, principalmente o azul, opta por uma luz forte, reconfortante, voltando ao azul exatamente quando o policial a deixa sozinha, ressaltando a ideia do amor ou algum tipo de proximidade como algo raro e rápido.
Em toda a história, o momento no qual o policial demonstra uma felicidade genuína é quando recebe uma mensagem da tal moça, agradecendo pelo carinho e desejando um feliz aniversário. Fechando o arco genialmente, Kar-wai liberta a traficante de seu passado, a fazendo matar seu “namorado”/patrão e jogando a peruca loira no chão, impedindo que o espectador veja sua real aparência. Percebam que ao lado do corpo há uma lata, e a data de expiração é aquele dia.
A segunda história também envolve um policial e uma jovem que trabalha numa lanchonete. O diretor adiciona um elemento interessante: a música. Trabalhando com os conceitos de repetição e diferença, Kar-wai utiliza “California Dreamin”, primeiro como um elemento para Faye chamar a atenção do policial, para criar um pequeno conflito, depois para plantar uma semente em sua cabeça e, por último, para uni-los, ainda que por pouco tempo. Sem falar no desejo que a personagem tem de ir para a Califórnia.
Ele acabou de ser dispensado pela namorada e sente um vazio tão grande, que seus únicos confidentes são bichos de pelúcia e objetos caseiros. A casa, que esbanjava alegria, inunda – uma metáfora para a sua incapacidade de chorar.
Existem barreiras que separam os protagonistas e Faye, apaixonada pelo policial, faz de tudo para derrubá-las. Kar-wai acredita muito no “estar apaixonado” e seus filmes são repletos de sequências nas quais os personagens estão sozinhos e radiantes, no entanto, a reciprocidade é praticamente impossível por uma série de questões que ele abordou profundamente em outras obras.
Por consequência do destino, Faye consegue a chave do apartamento do policial e decide disponibilizar seu tempo exclusivamente para a limpeza e a reforma daquele ambiente frio e moribundo. Não se trata de uma faxina ou um favor, era a única forma dela estabelecer algum tipo de laço afetivo com ele, que não a notava. Faye é agitada e perceptiva, mas é extremamente tímida e não consegue simplesmente dizer o que sente, as coisas não funcionam assim nos filmes de Kar-wai. Se o diretor quer que uma relação evolua, ele investe em diálogos sutis, que denotam um interesse e um afeto maior, ou em olhares penetrantes. O policial, gradativamente, percebe que alguma coisa em sua casa está mudando, até o gosto da comida é melhor e, ao descobrir a verdade, em vez de revoltado, fica aliviado e feliz, alguém o amava.
O desfecho é belíssimo e conclui a brilhante rima envolvendo a já citada música. O que era insuportável se tornou necessário. Tudo é uma questão de hábito e o policial havia aceitado que amava Faye e que aquela música era realmente boa…
A fotografia investe na atmosfera mais melancólica possível, abusando de cores frias, como o azul, o verde e o cinza. Os personagens se encontram em uma escuridão absoluta, inclusive em seus apartamentos. Quando isso muda? Quando Faye está na casa do policial, quando ele percebe o que estava acontecendo e quando os personagens da primeira história estão juntos. Outra sequência que fica interessante graças ao contraste de cores é aquela em que a traficante rapta a filha de um homem que precisa lhe dar uma informação; de um lado, o azul reflete o medo e a insegurança de um pai impotente, do outro, a cor é quente, salientando que ela não faria nenhum mal à criança.
A direção de arte é responsável por criar núcleos apertados e sem vida. As residências são tomadas por tons pastéis e impressionam pela bagunça. Percebam que nos flashbacks, nos quais o policial da segunda história estava com sua antiga namorada, a zona era a mesma, entretanto, não importava, inclusive dava um charme a mais e a luz era muito mais presente. A presença de Faye conversa com o retorno a uma rotina mais organizada e alegre. Nesse sentido, a luva rosa é um elemento importante, enfatizando o amor que ela sente.
O policial 223 usa uma gravata vermelha, uma camisa azul e um casaco cinza – dor, melancolia e desesperança. O mesmo pode ser dito sobre a traficante, cujo figurino é um esconderijo para a sua personalidade e seus reais sentimentos.
Kar-wai estava a todo vapor. Inventivo como sempre, o diretor faz do Step Printing a sua principal marca. O que é isso? Simples: pegar os tradicionais 24 frames por segundo e multiplicá-los. Kar-wai recorre a essa técnica utilizando poucos frames, gerando um efeito único e bastante expressivo, no qual a imagem fica distorcida e as pessoas se movimentam em uma rotação fora do comum.
O plano mais belo do filme, aquele em que a multidão caminha freneticamente, enquanto o policial e Faye ficam imóveis, apenas observando pontos distintos, é um grande exemplo. Os outros não interessam, somente os dois, que estão imersos em mundos particulares. O policial pensa na mulher que o abandonou e Faye olha para ele com muita atenção. O contraste é alcançado da seguinte maneira: os protagonistas se mexem vagarosamente ao extremo.
Propositalmente caóticas, as cenas de ação na primeira história refletem o estado mental do policial 223 e da traficante, e reafirmam o domínio de Kar-wai perante essa técnica, a qual ele aplicou de uma forma mais variada em “Fallen Angels”.
O diretor sabe que a reação de um personagem, dependendo do momento, é muito mais significativa que a fala do outro. Sua câmera nos guia diante de tantos rostos tristes e solitários e alguns de seus planos são absolutamente deslumbrantes. A narração, artifício comum em sua filmografia, é brilhantemente inserida, dando complexidade aos personagens e ao filme.
A montagem reforça a raridade de momentos genuinamente felizes através de cortes abruptos. A mesma dinâmica é atribuída ao trabalho ilegal realizado pela traficante. Nas sequências mais eletrizantes e tensas, Kar-wai e seu montador criam uma incoerência visual, a partir de sucessivos planos espacialmente confusos que dão um nó na cabeça do espectador, instaurando uma sensação de atordoamento.
Takeshi Kaneshiro, Brigitte Lin, Tony Leung e Faye Wong estão excelentes, principalmente os dois últimos – colaboradores habituais de Kar-wai. Os atores captam perfeitamente a essência do filme e não dependem unicamente da atmosfera, transformando cada personagem em um indivíduo especial e interessante.
“Nós cruzamos com muitas pessoas todos os dias. Podemos não saber tudo sobre elas. Mas um dia podem se tornar nossos amigos ou até mesmo confidentes. Isso foi o mais próximo que chegamos. Só 0,01 centímetros nos separava. Mas 57 horas depois, eu me apaixonei por ela.”
“Se as memórias pudessem ser enlatadas, elas também teriam datas de validade? Se sim, espero que durem por séculos.”
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