Fanny Brawne é uma costureira que se aproxima do poeta John Keats e acaba se apaixonando.
Eles são “vizinhos”, talentosos no que fazem, presos a uma série de convenções que não vê com bons olhos esse romance. Keats ainda precisa lidar com a iminente morte de seu irmão.
“Bright Star” é uma obra prima, o melhor filme que Jane Campion já realizou. Não por focar em um “amor proibido”, afinal, essas amarras são fáceis de se desvencilhar, mas pela forma que a diretora retrata a relação entre os dois, entendendo a natureza de ambos e homenageando Keats, um dos maiores poetas românticos de todos os tempos.
Campion sempre dá uma atenção especial à ótica feminina. Sua câmera emula rápidos olhares e é empática ao estudar o rosto de Fanny. Não precisamos de muitos minutos para perceber o seu interesse por Keats.
As palavras dão algum sentido à vida do poeta, que não ganha dinheiro com seus versos e que, apesar de escrever sobre o amor, não o conhece verdadeiramente. “Eu não acreditava nisso”.
Vista pelos homens como uma oportunista, Fanny, obrigada a ir a bailes de gala – dos quais a diretora, acertadamente, praticamente descarta, mostrando apenas um -, se apaixona por um sujeito que não pode lhe dar nada, além de um amor puro e inegociável.
O romance é intenso na forma como os protagonistas se adoram e passam a criar uma espécie de dependência, no entanto, Campion foge de qualquer abordagem sexual, reforçando a proposta poética a todo instante. As mãos que se entrelaçam, a presença silenciosa do outro lado da parede, os passeios pelos campos e, claro, a leitura de poesias cada vez mais sinceras e emocionantes compõem a narrativa.
É tudo tão delicado e bem pensado, que, em inúmeras sequências, me vi completamente deslumbrado e boquiaberto. Campion utiliza planos gerais, fazendo rimas entre a beleza da paisagem e do romance.
No fundo, “Bright Star” não é sobre os seus personagens, mas sobre o que sentem. Não podemos dizer que conhecemos Keats e Fanny, apenas que acompanhamos o desabrochar de uma paixão cujo desfecho é trágico. Campion não está interessada em analisar a injustiça sofrida pelas mulheres no século XIX, em Londres, nem em se aprofundar na vida de um poeta que só obteve reconhecimento após a morte. Seu objeto de estudo é o amor e Fanny o personifica em suas mais diversas fases. A tímida aproximação, sorrisos, o sonho se tornar realidade e a dor imensurável. “Isso é amor?”, pergunta a personagem, deitada na cama, deprimida. Fanny passa pelo início e pelo fim, vislumbramos o impossível e chegamos, infelizmente, ao insuportável. Keats é a prova de que um bom poeta, por mais sonhador e talentoso que seja, precisa de um amor. A qualidade e a intensidade de seus poemas mudam e a cena em que um complementa o verso do outro é espetacular. O texto é pessoal, eles sabem de cor.
“Quase desejo que fôssemos borboletas, que vivem apenas três dias de verão. Três dias assim com você me dariam mais prazer que cinquenta dias normais”. Esse trecho basicamente define a obra.
A cena na qual o casal brinca e caminha levemente pelo campo florido é a que vai ficar eternizada em minha mente, por ser tão precisa quanto o parágrafo acima e por representar com uma exatidão poucas vezes vista no cinema o que é o amor em seu estado mais puro e sensível.
A fotografia é extraordinariamente bela. As paisagens ensolaradas são um belo contraponto a espaços fechados e escuros, como, por exemplo, o que Fanny chora ao receber a notícia da morte de Keats.
O balanço entre fases, cores e ambientes é perfeito – um genuíno e profundo retrato sobre o amor e suas camadas.
A direção de arte explora o luxo da alta sociedade e seus bailes de gala, todavia, como mencionei, esse não é o interesse de Campion, que foca na simplicidade do poeta e da costureira, que dividem a mesma casa.
As borboletas que voam sobre o quarto de Fanny, são varridas em sequência, mortas, simbolizando a natureza caótica de um romance.
Os figurinos são fundamentais para a fomentação da personalidade dos protagonistas. Keats veste um fraque verde, salientando a condição solitária do poeta. Fanny, por outro lado, usa roupas vermelhas ou rosas que enfatizam a sua busca por amor, entretanto, sua admiração por Keats é tanta, que sua vestimenta invariavelmente se adapta ao estilo mais introspectivo de seu amado. Há momentos desoladores também e Fanny está sempre apropriada para as ocasiões.
A trilha sonora encapsula em melodias sutis a complexidade envolvendo o amor.
Jane Campion tem uma capacidade formidável de criar quadros e sequências estonteantes. No entanto, o que mais chamou a minha atenção foi o seu domínio perante a mise en scéne. Cada movimento e posição dos personagens na tela foram milimetricamente calculados e afetam diretamente o espectador – perceba ele ou não.
O plano-detalhe das mãos entrelaçadas, a parede que separa e serve como barreira simbólica do romance, os corpos que se unem no sofá e a significativa distância entre os dois quando é anunciado que Keats irá tratar sua doença na Itália são detalhes geniais. Percebam que Fanny não está na área mais escura do quadro quando descobre que seu “amante” faleceu, ela caminha e se encolhe nesse canto da forma mais orgânica e natural possível. E na última noite juntos, em que imaginam um futuro perfeito e irreal, Campion utiliza um plongée – ângulo bastante expressivo – para destacar o simbolismo do momento.
Outro mérito da diretora é dar espaço para longas declamações de poesias, potencializando o tom romântico/melancólico da obra. As imagens e as palavras têm um valor equivalente. Não podemos negar que a diretora, de certa forma, exalta a figura do poeta, a partir de planos que captam sua essência cerebral e passional – em cima de uma árvore, por exemplo.
Abbie Cornish faz de Fanny uma jovem adorável, de personalidade forte. A atriz deixa nítido desde o início que está apaixonada por Keats, contudo, seu entendimento sobre os próprios sentimentos é gradativo e, ainda que não tenhamos um desenvolvimento de personagens, é inegável que existe um arco – bem identificável, por sinal – e Cornish vai de um extremo ao outro com propriedade. Em nenhum momento duvidamos de suas emoções.
O subestimado Ben Whishaw oferece, até então, a performance de sua carreira. Ele age, fala, caminha, se posta e se veste como um poeta. Sua caracterização é de uma riqueza impressionante e, sim, Whishaw alcança o feito de ser confundido com a pessoa real. O ator tinha a difícil tarefa de apresentar ao espectador um romantismo anacrônico e escapa de armadilhas com a classe que lhe é peculiar, esbanjando, até nos períodos mais duros, gentileza, carinho e delicadeza. Não se enganem, ele também se irrita, mas essa não é a sua característica principal.
“Bright Star” é uma maravilha, perfeito em cada fragmento e área técnica. Memorável não por ser uma “história de amor”, mas por entender o que esse termo significa. Keats morreu, seus poemas são eternos.
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