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Misturar horror e romance não é nada simples. “Let The Right One In”, de 2008, é uma obra prima, provavelmente o melhor exemplo dessa união de gêneros.“Bones And All” entra para esse seleto grupo, conseguindo ser belo, aterrorizante e profundamente relacionável. Esse é o tipo de história que tocará o coração de qualquer pessoa em busca de um par, autoconhecimento e amor.

Abandonada pelo pai, que, após inúmeras tentativas, se sente incapaz de cuidar da filha canibal, Maren segue seu caminho errante atrás de sua mãe. No caminho, ela encontra Sully, um “devorador” experiente, capaz de farejar semelhantes a quilômetros de distância.

Ele é estranhamente solitário, sente a necessidade de se aproximar das pessoas, mas não é jeitoso e gera um efeito contrário, afastando a todos. Sully é perturbador, personifica o efeito da solidão a longo prazo.

Maren está em busca de alguém que a coloque nos eixos, não de um canibal voraz que guarda o cabelo de suas vítimas. Ela não se orgulha de sua condição, não quer ser um monstro ou uma ameaça e acredita que a mãe é a peça que falta para “endireitá-la”. Em um mercado, a protagonista se depara com Lee, um devorador que compartilha os mesmos dilemas e dores.

-Você parece ser legal.

-Eu pareço ser legal?

Esse breve diálogo salienta a insegurança do personagem e da maioria dos jovens. No fim das contas, a trajetória canibal se assemelha com a humana. Buscamos respostas em avaliações alheias, nos levamos demasiadamente a sério, temos dificuldade em dizer o que importa e retemos sentimentos. Lee e Maren são da mesma “tribo”, não se gabam por comerem pessoas e visam apenas a paz nos ombros de uma possível alma gêmea.

Eles se sentem perdidos, vazios e sem propósito. A protagonista quer ir a Minnesota e Lee se dispõe a levá-la, é a maior honra de sua vida. O casal esbarra em alguns sujeitos duvidosos – a obra não esconde seu caráter de “road movie -, sendo um deles um humano que decidiu se tornar canibal. Uma das grandes questões abordadas pelo roteiro é a escolha. Existe opção ou a natureza é imutável?

Maren é ingenuamente pura, vislumbra um mundo irreal no qual ela é uma pessoa “normal”. A protagonista encontra sua mãe, trancafiada em um manicômio, num estado avassalador de abstinência. Janelle fugiu por se conhecer, pela segurança da própria filha. O carinho materno era uma ilusão e Lee compreende a opção da “pobre coitada”. Diferentemente de Maren, ele carrega um enorme e misterioso fardo e não julga o comportamento animalesco de seus semelhantes, apesar de tentar fugir do “lugar comum”. Maren decide se afastar para pensar, se coloca num pedestal invisível e, por alguns dias, perde o que havia conquistado. A natureza “humana” pode até ser controlada, mas nunca modificada. Se Lee mata um homem, é porque está faminto e precisa sobreviver. Ele não é um monstro, porém nunca deixará de ser um devorador – foi assim que veio à terra.

O amor é a única força capaz de freá-los, de dar sentido a existências burocráticas e famintas. O sangue das vítimas assume a conotação de um desejo “puramente” carnal, enquanto os momentos românticos são retratados de maneira mais íntima e vital, seja pela comunhão dos corpos, seja pelos planos-detalhe das mãos entrelaçadas, seja por travellings que aproximam os dois. Guadagnino explora a natureza a partir de planos gerais lindíssimos, realizando uma constante rima entre a paisagem e a paixão jovial.

As escolhas musicais denotam, além de um excelente gosto do cineasta, um cuidado para ressaltar que estamos diante de um romance esperançoso e melancólico, conversando diretamente com tons frios e azulados que tomam conta da tela. “Atmosphere”, do Joy Division, basicamente sintetiza a trajetória soturna e reveladora dos amantes canibais.

A distância só os aproxima, é um mal necessário para que percebam o quão solitários são e que não dependem somente de corpos para sobreviver, mas da companhia alheia. Deveríamos temê-los, todavia, conseguimos apenas sentir compaixão e pena de jovens tão vulneráveis. Por mais poético que seja, o tom adotado por Guadagnino caminha em linhas trágicas. No fundo, os canibais são animais. Maren e Lee podem até assumir um compromisso e viverem numa paz invejável, contudo, infelizmente, são seres amaldiçoados. É triste, pois chegamos a aceitá-los como semelhantes, porém profundo e honesto pela forma que o cineasta confecciona o desfecho. A violência gráfica e o amor incondicional se confundem em uma das sequências mais poderosas que já assisti. O sangue e a brutalidade são enfatizados pelo uso de câmera lenta, por um plano subjetivo específico e pela montagem, que vai da tranquilidade urbana ao caos. O silêncio, que dita o ritmo de suas secretas trajetórias, abafa os gritos – belo trabalho de design de som -, deixando a cena sublimemente visceral.

Guadagnino conduz o filme com o mesmo cuidado que os personagens têm para não deixarem rastros. Suas transições e movimentações de câmera são suaves. Sua concepção de quadros é algo a ser apreciado, assim como a capacidade de extrair beleza sempre que Maren e Lee estão juntos. Uma ida ao rio, uma música no rádio e interações raras nos transportam a uma intimidade delicada e desconhecida por eles.

Em contrapartida, o cineasta se sai igualmente bem quando quer nos aterrorizar. O horror físico não é gratuito, pelo contrário, acaba sendo fundamental para compreendermos a magnitude do desespero dos taciturnos. Os cortes em sequência são uma marca de Guadagnino – artifício que pega o espectador desprevenido. A câmera na mão é eficiente para gerar tensão e, principalmente para emular o comportamento descoordenado de um personagem.

Mark Rylance está ótimo como Sully. O ator evoca uma bizarrice oriunda de sua condição, que confere complexidade à figura do devorador e força ao horror – não à toa, ele surge da escuridão.

Taylor Russell surpreende pelo nível de maturidade e por carregar um arco arrebatador.

Timothée Chalamet oferece a melhor performance do filme. Seu carisma habitual dá a Lee uma personalidade instigante, mas ele vai além, se desprende de certos vícios e nos fascina com suas emoções genuinamente contidas. Em sua primeira aparição, Chalamet praticamente balbucia e se mantém cabisbaixo. Seus sentimentos não demoram a aflorar e o seu ápice está na cena em que finalmente se abre para Maren. As palavras saem com dificuldade de sua boca e seu choro é, simultaneamente, bonito e duro.

“Bones And All” é inovador ao dizer que o amor é o máximo que podemos alcançar.

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