“Bamboozled” é o filme mais ácido da carreira de Spike Lee. Pode ser considerado uma sátira, mas é uma verdadeira porrada, na qual o diretor aponta o dedo para tudo que o incomoda, revolta e tira o seu sono. Há algumas cenas engraçadas, entretanto, de um modo geral, esta é a obra de Lee mais difícil de se adentrar.
Pierre Delacroix é um roteirista de programas televisivos. Ele se considera talentosíssimo e acredita que não tem tanto espaço na emissora por ser negro. Seu chefe, Thomas Dunwitty, é o tipo do sujeito que se sente no direito de desrespeitar os negros por “conhecer” a comunidade e ser casado com uma mulher negra. Dunwitty não quer roteiros nos quais os afrodescendentes sejam pessoas estabelecidas e respeitadas, sua cabeça preconceituosa o diz que esse tipo de programa não interessa a ninguém.
Cansado e desmotivado, Delacroix decide dar a sua última cartada: escrever um roteiro completamente racista, que colocaria os seus superiores para refletir e forçaria a sua própria sua demissão.
Dunwitty se delicia com a ideia e a aceita de imediato. No programa, dois amigos – Mantan e Sleep’n Eat – são escravos que trabalham em uma plantação de melancia. Ambos são caracterizados como preguiçosos, ignorantes e vagabundos e, para piorar, os atores deveriam usar o famigerado “blackface”.
A fim de receber uma indenização e se libertar, Delacroix acaba promovendo um retorno a um passado cruel e tortuoso.
A princípio, o protagonista se decepciona e repensa a sua estratégia, contudo, “Mantan” se torna um sucesso retumbante e traz ao protagonista o tão desejado reconhecimento. Por um lado, Delacroix dificilmente teria tanto sucesso com outro programa, no entanto, seu roteiro é repulsivo e agressivo. O que pesa mais? Lee não mede esforços para dizer que a fama é um perigo e traz à tona o pior dentro do ser humano, afinal, Delacroix se vendeu, aceitou ofensas a si e a sua própria raça por dinheiro e alguns meses de estrelato. A presença de seu pai pode ser considerada essencial para a transformação de sua personalidade. Ao vê-lo se apresentando em um bar, Delacroix se depara com um homem íntegro e cheio de valores e percebe o seu erro. Existe um limite para o humor? Acredito que não, mas também acredito que nem tudo é engraçado e que o bom senso deve sempre prevalecer. Delacroix não era mais um especialista em sátiras, era um produto, um traidor, um homem que colocou seu ego à frente de seus sentimentos e dos demais amigos e familiares.
É fácil atacar os negros. Quantos deles, além do protagonista, estão envolvidos no roteiro de “Mantan”? Nenhum. O mundo tem uma cor predominante, isso não está nítido apenas na emissora, mas no desespero e no despreparo dos negros, que, em sua grande maioria, não enxergam o óbvio e adoram o programa. Não é uma questão intelectual, é sobre se sentir tão inferior, que qualquer oportunidade de rir ao lado dos outros é válida, mesmo que seja de si mesmo.
O dinheiro e as oportunidades não são iguais. Os atores, Manray e Womack, não gostam nem um pouco do roteiro, porém não fazem uma reclamação sequer, pois entendem que oportunidades assim são raríssimas. Eles precisam sobreviver e dançar na rua não é um meio sustentável.
Lee faz de “Bamboozled” uma denuncia, um pedido de socorro, um filme no qual ninguém consegue olhar para os negros com empatia e carinho.
Apenas os revolucionários violentos, ligados ao rap e ao estilo gângster entendem o absurdo e a maldade do programa. São eles que decidem agir.
Nem a crítica especializada escapa, tratando “Mantan” como uma verdadeira obra prima.
As coisas tomam proporções cada vez maiores, o que nos leva a arcos interessantes. Womack é o primeiro a perceber que tudo tinha limite e que se inferiorizar daquela forma não era algo saudável. Inclusive, a forma como ele fala “it’s showtime”, cada vez mais consumido e desanimado, me lembrou bastante Joe Gideon, de “All That Jazz”. Enquanto isso, Manray fecha os olhos e vê o programa como um emprego qualquer. Sua casa aumenta, mas sua decoração indica que ele se tornou um escravo do mundo moderno.
Delacroix tem um arco extenso, indo de um homem com poucos amigos e desprestigiado para um solitário e com sucesso. São duas faces da mesma moeda, o tipo da escolha que qualquer ser humano pode tomar. Delacroix não é um vilão, mas não tem o direito de reclamar de seu desfecho, pois, como o próprio disse: “pagamos pelo que nos tornamos”.
Em termos formais, “Bamboozled” é o filme mais cru de Spike Lee, que utilizou uma câmera digital. A fotografia não tem vida, optando quase sempre por tons escuros e cinzentos. A câmera praticamente não sai da mão do diretor, deixando a experiência ainda mais sufocante e realista. Lee utiliza planos fechados e ângulos inusitados para tirar o espectador de sua zona de conforto. Esta talvez seja a obra em que ele melhor brinque com plongées e contra plongées para expor relações de dominância. O “Double Dolly” aparece algumas vezes, sendo a mais icônica a apresentação do protagonista.
A montagem quase nunca para, os cortes são frequentes e a inserção de programas e filmes antigos nos quais os personagens usavam “blackface” é brilhante. O ritmo caótico de “Bamboozled” culmina em uma montagem melancólica e reflexiva. Vale ressaltar que, pela primeira vez, Lee utiliza artifícios como a Freeze Frame e a Split Screen.
A direção de arte trabalha bem o arco dos personagens e suas respectivas personalidades. Dunwitty, como “bom negro”, tem fotos de vários ícones de sua raça na parede de seu escritório. Manray inicia o filme em um project decadente e se muda para uma bela casa, que, infelizmente, representa o oposto de liberdade.
Delacroix vai se tornando cada vez mais fanático, o que é denotado através dos objetos e dos quadros de “Mantan” em sua sala.
A trilha sonora é eclética, misturando batidas melancólicas com rap e soul.
Damon Wayans oferece uma performance estranha. Não se trata de um grande ator, no entanto, o seu esforço é notável e seu talento aparece no terceiro ato, no qual Delacroix vive a sua maior crise existencial.
Jada Pinkett Smith interpreta Sloan, secretária do protagonista, e merece elogios pela força dramática e a capacidade de transformar a personagem em uma mulher forte e sensível.
Dito isso, o principal destaque, na minha opinião, é Michael Rapaport, que faz de Dunwitty uma figura propositalmente caricatural, desprezível e engraçadíssima.
“Bamboozled” é uma visão de mundo de um diretor que ama a sua raça e que, diferentemente da maioria dos personagens do filme, não se cala perante o racismo estrutural.
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