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“Alma Corsária” é um tratado de liberdade narrativa. Antes de começar, Carlos Reichenbach fala sobre o cunho pessoal do projeto e ele, de fato, chega a conclusões muito humanas. No entanto, o que torna o filme tão especial, é o seu descompromisso com o convencional e a facilidade que tem para envolver o espectador em sua experiência sensorial.

Reichenbach rompe com a ideia de continuidade, investindo num realismo quase surreal. A montagem capta o caráter caótico das memórias, conferindo uma estrutura episódica à narrativa, com transições abruptas e saltos temporais. 

Rivaldo e Teodoro, amigos e poetas, estão lançando um livro em conjunto. O evento acontece numa renomada livraria? Não, num boteco fuleiro. Reichenbach trabalha com uma ideia paradoxal: sua poesia é imunda. A beleza de seus enquadramentos, movimentos de câmera e da celebração da amizade se confunde com uma breguice atraente. Ele rejeita a beleza tradicional, transbordando sinceridade autoral. O linguajar chulo, permeado por palavrões advindos do fundo da alma, faz jus aos ambientes centrais e aos personagens – alguns deles parecem ter saído de um sonho bizarro. “Coreano é a mãe. Eu sou chinês, de Hong Kong”. A partir de flashbacks que refletem a subjetividade das memórias dos escritores, acompanhamos suas trajetórias, da adolescência à vida adulta. 

Teodoro é de uma família de classe média, o que, nos anos posteriores, ao entrar em contato com dogmas políticos, o deixa com uma sensação de culpa. Teodoro evita compromissos amorosos, preferindo a variação de sabores. Em determinado momento, ele avisa a Rivaldo que dormiu com uma garota por quem o amigo havia criado uma afeição: “Nós somos um só, Rivaldo”. Teodoro é um poeta mulherengo; um burguês politizado; um erudito cafona. Teodoro é, como o filme, um paradoxo. Rivaldo é humilde e, embora se comunique de forma “suja”, foca mais em questões introspectivas. Em um dos fragmentos, ele ajuda uma amiga que trabalha como prostitua, fingindo ser seu marido para sua família. Ali, sua alma melancólica fica evidente. Ficar no interior até parece uma boa ideia, já que, em São Paulo, as mulheres não se interessam por ele. Rivaldo se apaixona facilmente, mas Reichenbach vai na contramão de uma abordagem romântica, focando na pulsão sexual. Reichenbach desnuda seus personagens – às vezes, literalmente – e afirma que, no fim, por mais percalços, acertos e erros, o que sobra são os amigos e as memórias. 

O vermelho é a cor destacada no boteco, uma cápsula de prazeres do cineasta. É o lugar onde se conversa sobre sexo, banalidades, política e que se escuta a Claude Debussy. Sim, há uma sequência em que um sujeito toca “Clair de Lune” – o fisiculturista na porta do estabelecimento, banhado por uma luz vermelha, é o toque surreal. A beleza do icônico tema transporta parte dos personagens a lugares distantes, de paz e harmonia. Reichenbach retrata São Paulo como uma selva de prédios opressivos. O uso de contra-plongées faz com que os edifícios engulam as pessoas, com destaque para aquele no qual Rivaldo consegue um emprego como jornalista – a liberdade artística do poeta é soterrada pelas editorias. Nas cenas em que Rivaldo é assaltado e humilhado, o diretor dá a sua própria conotação ao azul, que, presente na iluminação da rua escura e na roupa dos bandidos, vira o signo do medo – o vermelho, da revolução e do desejo, não lhe serve. 

Se o filme é de cunho pessoal, por que não homenagear alguns cineastas? Samuel Fuller, uma das inspirações de Reichenbach, ganha, enfim, seu merecido Oscar. Durante um segmento inteiro, ele emula Godard em sua fase mais política, chegando a brincar com seu radicalismo: “Porra, Che, eu aqui morrendo de fome e você falando em massas”. 

— Sai da minha casa.

— Você está sendo fascista.

A opção da fotografia pelo preto e branco nos anos iniciais não é das mais originais; todavia, a transição para as cores se dá num momento perfeito, ressaltando a liberdade sentida pelos amigos. Reichenbach compôs a trilha sonora, que também opera entre a cafonice cômica e a beleza íntima. “Alma Corsária” não é grandioso por seus temas e discussões, mas por sua originalidade narrativa. O filme me remeteu à música “A Revolta dos Dandis Part I”, dos Engenheiros do Hawaii.

Entre um rosto e um retrato

O real e o abstrato

Entre a loucura e a lucidez

Entre o uniforme e a nudez

Entre o fim do mundo e o fim do mês

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