Calum e Sophie – pai e filha – estão a caminho de Torremolinos, onde passarão férias. A diretora Charlotte Wells não está interessada em criar uma trama, mas em desenvolver personagens complexos e as interações entre os dois. Há momentos doces e contagiantes, no entanto, no fundo, seu filme é profundamente melancólico.
A proposta da diretora é bastante similar a de Lukas Dhont – “Close”- em diversos aspectos, sendo o principal, a observação constante. Da mesma forma em que vemos os dois se divertindo, dividindo intimidades, rindo das coisas mais banais e demonstrando um afeto mútuo através de sutilezas, como cobrir aquele que está dormindo e dizer algo reconfortante; entendemos perfeitamente quem eles são individualmente, em qual fase da vida estão e como suas mentes funcionam.
Sophie tem onze anos, considera as crianças meros pirralhos e olha para os adolescentes com interesse, demonstrando vontade em fazer parte daquele grupo – se sentir importante. Ainda que imatura, Sophie está em plena puberdade e começa a pensar em sexo – de uma forma pura, é claro. Existem barreiras físicas e simbólicas que a separam dessas pessoas, mas ela encontra um amigo e sempre que o vê no fliperama, propositalmente se aproxima. Os dois chegam a se beijar e Sophie conta para o pai, numa bela demonstração de confiança e de mente aberta por parte de Calum, que enxerga a situação com normalidade, exortando que ela sempre se abra para ele.
“Não me vejo aos quarenta, já me surpreendo por ter chegado aos trinta”, diz o protagonista para si, expondo toda a sua angústia.
Calum é um homem deprimido, enigmático e sensível, que quer dar à filha as melhores férias de sua vida, a fim também de relaxar um pouco. Entretanto, se ao lado dela ele faz um esforço genuíno para se animar e alegrá-la, quando está sozinho, fica em silêncio, pensando em algo insolúvel e chorando copiosamente.
A meditação é uma clara forma de buscar algum tipo de conforto fora da esfera convencional, mas, sinceramente, nada parece ser capaz de tirar Calum do buraco depressivo. Algumas de suas camisas refletem o seu estado de espírito, sendo o preto e o vermelho as cores mais marcantes. Ele caminha até a escuridão e mergulha no mar – tentativa de suicídio? -, muda a feição e a entonação ao escutar Sophie relatar sobre uma tristeza repentina que sentiu e fala sobre o seu aniversario de onze anos com muita dor, sem nem conseguir olhar para a filha. Wells é empática e não foca em seu rosto, apenas em seu reflexo, dando o espaço necessário para suas emoções. Calum sorri quando recebe um feliz aniversário de Sophie, porém não se sente bem ao ser parabenizado por vários desconhecidos. Ele nunca se encaixou em sua cidade natal, passou por decepções amorosas e vive uma crise financeira. Não é pouco, mas, ainda assim, de onde veio essa melancolia toda?
Wells transita perfeitamente entre o estudo de personagens e a interação honesta entre pai e filha. É ela que dá ao protagonista um tempo para respirar e relaxar e para Sophie se divertir ao lado de uma pessoa que ama, mas que encontra apenas nas férias. Além de delicados e agradáveis, os momentos entre os dois são movidos por algumas decisões erradas e indelicadezas típicas nesse tipo de relação. Calum não nota que Sophie não estava exatamente “pronta” para jogar polo aquático e falta a ela sensibilidade para perceber que o pai não quer participar do karaokê. Ele diz coisas das quais se arrepende e Sophie, como uma boa pré-adolescente, sabe jogar baixo.
Os planos gerais trazem uma certa tranquilidade ao filme, assim como a ensolarada fotografia, mesclando perfeitamente com ambientes claustrofóbicos e uma escuridão insuportável, que enfatizam a depressão do protagonista.
Em determinado momento, eles conversam e uma parede os separa; do lado de Sophie, a luz é forte e intensa, do de Calum, o tom é frio e azulado.
Os vídeos caseiros e a foto da polaroid marcam a eternidade. As férias, para Sophie, aos onze anos, foram divertidas e intensas; no presente, ela enxerga essa alegria, mas, principalmente, um homem perdido e deprimido. Nesse sentido, “Aftersun” é um filme sobre memórias e como elas se alteram na medida em que amadurecemos e enfrentamos dores até então desconhecidas. Não chegamos a interagir com a Sophie adulta, contudo, seu semblante e sua casa, cercada por cores frias, denotam a mesma melancolia que Calum apresentou em Torremolinos.
Sua perspectiva havia mudado e a montagem é a grande responsável por realizar as mais belas rimas visuais entre passado e presente que vi nos últimos tempos. Enquanto dança com a jovem Sophie e se diverte em um espaço aberto, Calum encontra a filha, já mais velha, em um lugar escuro e angustiante, criando uma atmosfera onírica.
O último plano é belo e simbólico. A câmera se mantém distante e o protagonista continua andando, só não sabemos para onde…
A estreante Charlotte Wells merecia uma indicação ao Oscar. Sua direção é, simultaneamente, discreta e autoral. Não há grandes exibicionismos, no entanto, cada plano diz algo sobre os personagens e o que eles estão sentindo naquele exato momento. Seus movimentos são precisos, delicados e combinam com a montagem. Seus enquadramentos são expressivos, principalmente os que vemos Calum e Sophie de costas. Na primeira situação, a impressão é de que eles estão feridos e distantes, na segunda, que nunca estiveram tão próximos. O uso de câmera lenta na sequência de dança me pegou desprevenido e foi o artifício ideal para explorar as passagens temporais e a importância de cada segundo. Vale ressaltar também a escolha da música – “Under Pressure” – e os versos que casam perfeitamente com tudo que acabamos de assistir. “This Is Our Last Dance. This Is Ourselves”.
Alguns diretores fazem de tudo para impressionar o espectador, quando na verdade, “apenas” observar já é suficiente.
Frankie Corio encanta pela doçura e pela espontaneidade. A jovem atriz vai muito bem ao expor o interesse por experimentar novas coisas e ao demonstrar um carinho que chega a ser ingênuo pelo pai. Muito do calor e do humor do filme partem de seu carisma.
Paul Mescal não tem a menor chance de ganhar o Oscar. No entanto, podemos considerar sua indicação uma vitória, já que “Aftersun” não é a xícara de chá da Academia. Sua performance é brilhante em todos os níveis. A melancolia está em seu olhar, na forma como escora seu corpo nas paredes e em certos suspiros. Calum é jovem e quando está se divertindo com a filha, demonstra um enorme vigor. No entanto, o que mais chama a atenção em sua composição é exatamente o que une essas duas facetas: a capacidade de demonstrar um esforço para alegrar Sophie.
“Aftersun” é uma obra prima, talvez seja o melhor filme do ano – a disputa é boa.
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