“After Yang” é basicamente uma meditação sobre a vida e o que é ser humano. Aqui, as memórias são traços que ajudam a relembrar a importância de certos detalhes, coisas que passam despercebidas, por exemplo, a natureza e toda a sua beleza. Mas não seriam as memórias apenas a sugestão de algo que aconteceu, ou seja, a memória de uma memória?
O humano é o que é por questões biológicas ou por uma capacidade de se relacionar e raciocinar?
Se em “2001” as máquinas avançaram tanto a ponto de tornarem os humanos obsoletos, em “After Yang”, os robôs existem para tirar certas dúvidas, preencher vazios e relembrar a todos que a vida é tão delicada quanto o pouso de uma borboleta numa flor.
Jake e Kyra são pais de Mika e Yang. A primeira é uma garotinha chinesa adotada, enquanto o segundo é “uma máquina”, cujo principal intuito é colocar a irmã em contato com as suas origens. A família dança e tira fotos, mas há algo aparentemente errado com Jake, que parece distante, está sempre ocupado com o seu trabalho – especialista em chás – e não demonstra muitas reações. Talvez a vida tenha se tornado algo óbvio, uma espécie de piloto automático.
Kyra sente que sua presença no crescimento de Mika é fundamental e expõe essa preocupação diversas vezes. Para piorar, Yang entra em pane e desliga por alguma falha em seu núcleo central – provavelmente uma metáfora para a desarmonia familiar.
Jake o leva em diversos especialistas e chega à conclusão de que não há nada a ser feito, a não ser doar seu “corpo” para um museu, que fica impressionado com o banco de memórias do robô. O filme é repleto de dualidades e essa é uma delas. Yang era um filho, mas também um instrumento e isso machuca a família.
No entanto, é a partir daí que a obra ganha contornos mais interessantes. Jake tem acesso às memórias de Yang e se depara com situações que fomentaram suas relações afetivas e que, gradativamente, se esvaíram. Uma folha caindo, a paisagem, uma bela árvore, algumas risadas, o afeto genuíno, uma felicidade contagiante. Jake sorri pela primeira vez e deve se perguntar se o tempo é algo resgatável, se esse seu olhar retornaria em algum momento. Provavelmente o protagonista nunca tenha percebido que tinha tudo o que precisava. Cada objeto e situação pode ser enxergado de uma forma distinta. Algo banal para alguém, pode ser poético para o outro e Yang tinha a capacidade de potencializar pequenas coisas que Jake um dia valorizou, mas que já havia se esquecido.
Assistir às memórias de Yang é como se redescobrir, se apaixonar e reviver o que deve ser apreciado. Alguns momentos são vistos por diversas perspectivas, dando um nível de detalhamento ainda maior sobre o funcionamento da mente do robô, que, ao mesmo tempo em que se sentia parte da família, se via distante, talvez por não ser de carne e osso ou por esconder alguns segredos.
Conversas entre os dois que não pareciam tão importantes, ganham um outro valor. A busca incessante de Jake por chás e compreender a complexidade por trás das ervas e raízes é uma clara forma de buscar um sentido para a própria vida, algo que o preencha e o ocupe. Ele caracteriza o sabor de um chá como misterioso e indescritível, assim como sua jornada na terra. Jake percebe que nesse período todo, Yang estava expondo toda a esfera da terra e o propósito das vidas humanas.
É reconfortante acreditar que o fim é apenas o começo. O robô diz que isso se aplica para as lagartas, mas dificilmente para os humanos e que não há nada de errado nisso. Kyra suspira e demonstra medo, enquanto Yang não se move. As principais diferenças estão aí, nessa fragilidade, na necessidade de enxergar algo concreto, um mundo perfeito.
Diferentemente do que os próprios donos pensavam, Yang tinha uma vida social e se encontrava com uma bela clone chamada Ada. Jake assiste a essas memórias também e fica encantado por diversos motivos: o amor e o afeto que os dois nutriam, a “humanidade do romance” e o envolvimento de Yang com situações tristes, que um robô em sua simples conotação não daria a menor atenção.
O protagonista não fala muito, mas alguns gestos e movimentos, como sair de casa e observar a natureza, provam que Jake estava tentando se renovar, alcançar o “status de um robô” e recuperar a harmonia familiar.
O último plano é sutil, uma bela imagem de carinho entre pai e filha.
A direção de arte é espetacular, misturando perfeitamente elementos naturais – árvores, flores e chás – com outros, futurísticos – prédios com arquiteturas arrojadas e ambientes que certamente não parecem atuais.
O carro é um grande destaque, conseguindo explorar os dois lados, sendo constituído por madeira e um pequeno jardim, mas também por um formato esquisito – nunca o vemos por inteiro.
A montagem trabalha bem as passagens de tempo, tornando-as coesas, importantes para o arco dos personagens e para a mensagem final. Os cortes que permitem que o espectador veja a mesma situação por um outro ângulo ou com uma outra entonação merecem elogios.
A trilha sonora de “After Yang” é delicada e melancólica. As sequências mais inspiradas e poéticas são potencializadas pelas belas melodias.
Os flashbacks não são necessariamente tomados por cores quentes; o presente é frio e escuro. O que realmente diferencia as passagens temporais é a presença marcante da natureza, que enche a tela de beleza.
O diretor Kogonada não tem pressa alguma para conduzir suas obras, cuja principal característica é a contemplação. “After Yang” pode ser visto como um primo de “The Tree Of Life”, de Terrence Malick, apesar de ter um tom bem mais sereno. Ao mesmo tempo em que tem uma capacidade impressionante para criar quadros estonteantes, Kogonada nunca chama a atenção para si. Muitos de seus planos são de conjunto e apenas observam uma situação específica. Às vezes, o diretor mantém sua câmera estática, até mesmo quando os personagens saem de cena, como se dissesse que ainda há algo ali para se apreciar. Kogonada é um verdadeiro autor, com uma visão artística definida, original e que certamente não agradará a todos.
Colin Farrell é o grande destaque do elenco, conseguindo ser uma presença, simultaneamente, marcante e silenciosa. Seus dilemas e dores estão em seu rosto e os lapsos de alegria são traços dignos de um grande ator. Os desinteressados talvez não enxerguem nada de especial em sua performance, no entanto, consigo ver com clareza um homem doído e quem sabe reconstituído pelas memórias daquele que não gostaria ter perdido.
“After Yang” é uma obra prima lindíssima, um filme que aborda os robôs não como máquinas que nos dominarão, mas como seres que vão nos reeducar e reanimar uma humanidade perdida, que permita saltos maiores e um olhar profundo sobre o universo.
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