Em 1984, David Lean, duas vezes premiado pela Academia, encerrou sua carreira. Assim como algumas de suas obras mais aclamadas, “A Passage to India” é um épico. Adela Quested e Mrs. Moore estão a caminho da Índia, onde encontrarão Ronny Heaslop, futuro noivo da primeira e filho da segunda. O filme se passa no período da ocupação inglesa, o que denota uma certa coragem de Lean, que, em seu último esforço, apontou o dedo para a própria pátria. Os nativos são tratados como sub-humanos, importantes apenas para servir os colonizadores. Aderir à cultura local e socializar com seres de pele escura são ideias absurdas, o que ganha força pelo modus operandi dos ingleses. A forma de segurar a xícara, as roupas “elitistas”, a frieza no trato e o sotaque pomposo são marcas que fomentam a antipatia sentida pelo espectador.
“Não entendo porque convidam essa gente e não os tratam bem”, diz Adela, que não demora a cansar das interações artificiais estabelecidas por seus compatriotas. A protagonista está lá para conhecer os mistérios da Índia e seu povo. As feiras, as ruas tumultuadas e as roupas tradicionais a atraem. Adela estava acostumada com um país que preza pela manutenção de uma imagem; o caos indiano era estimulante e desbravador. Em determinado momento, ela, durante um passeio solitário, se depara com estátuas sensuais de casais apaixonados. Os close ups revelam um anseio desconhecido e deixam nítido que aquele fogo inexiste em sua relação com Ronny, que adere ao preconceito e ao senso de superioridade. Como mencionei, a imagem é preponderante na vida daquelas pessoas e Adela percebe que seu casamento parte de uma tradição e do medo da solidão, não do coração.
O calor constante reforça a tensão geral e nos coloca em contato com o tumulto interno da protagonista. Mrs. Moore fica ao lado da amiga/possível nora e, numa das melhores sequências do filme, conhece, por acaso, Aziz, um médico local. Na mesquita, ele acredita estar diante de uma inimiga, no entanto, quanto mais se aproximam, mais iluminados seus rostos ficam. O carinho é mútuo, provando que, mesmo com o terrível contexto político, a animosidade não é obrigatória. Aziz é viúvo, gosta de agradar quem o trata com gentileza e exala bondade. Os casamentos na Índia são arranjados; há um acordo, não paixão – nesse sentido, Adela se sente um pouco indiana. Richard Fielding, administrador do colégio do governo, é o único inglês que se mistura com o povo local, que nutre interesse por atividades estimulantes e enxerga o vazio do comportamento colonizador. Lean não precisa de muito para abordar as diferenças culturais e não as associa, necessariamente, à “rivalidade”. Em um diálogo casual, Fielding fala sobre sua falta de pretensões amorosas para Aziz, que não entende a ideia de não levar o seu nome adiante – mundos distintos, percepções contrárias e respeito.
Aziz, então, organiza uma excursão para Marabar, um lugar famoso por suas cavernas. O cineasta britânico concebe quadros meticulosos, capturando paisagens raras. Ao entrar na caverna, Adela aceita o desconhecido, o que existe de obscuro dentro de si. Lean era o mestre dos épicos introspectivos. A partir de uma troca de olhares e de um plano-detalhe de mãos se tocando, ele gera apreensão. Nada ali, de fato, aconteceu, todavia, estamos imersos à perspectiva da protagonista, uma mulher “pura”, em um conflito existencial. Lean não permite que o espectador veja tudo; não sabemos como aquelas lesões surgiram, nem o que fez com que Adela descesse a montanha bruscamente. Aziz é acusado de estupro, o que é confirmado pela protagonista. Os ingleses tinham o que queriam: a possibilidade de comprovar a monstruosidade dos “subdesenvolvidos”, estendendo, significativamente, seu poder. Para eles, não é um julgamento sobre justiça, mas sobre a validação do preconceito.
Seria Aziz capaz de um ato tão cruel? O que aconteceu naquela caverna? Lean prepara o terreno para a fantástica sequência no tribunal. Adela se vê cercada de seres maliciosos que preparam um discurso e fazem questão que ela acredite no estupro, ainda que não tenha passado de um delírio. O quadro cada vez mais fechado, o figurino cinza e a montagem, que nos leva ao momento analisado, salientam a drenagem emocional de uma mulher que não ama seu noivo, não sabe exatamente o que quer e desaprova as atitudes de seus “parceiros”. “Eu retiro tudo”. A chuva, enfim, cai, simbolizando a festa de um povo que caminhava em direção à sua independência.
A verdade de Adela tem um efeito irreversível; a partir de agora, ela era uma inimiga, alguém que havia decidido por fechar as janelas e viver sozinha. Aziz, movido por rancor, demora a entender o tamanho de sua bravura. Judy Davis oferece uma performance magnética, transformando a protagonista num enigma através de expressões e gestos singelos. A força e o caráter são internos; a dor e a exaustão ficam expostos.
“A Passage to India” é um belíssimo filme.