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“The Blackout” pode ser analisado de diferentes maneiras. De um ponto de vista objetivo, Abel Ferrara orquestra um thriller psicológico eficiente, perturbador e esteticamente inventivo. “Lost Highway”, de David Lynch, também fala sobre a culpa de um passado desconhecido, ou seja, este não é um tema para cineastas convencionais ou burocráticos. Na trama, Matty, um ator hollywoodiano, descobre que Annie, sua namorada, por quem é apaixonado, realizou um aborto. O casal, então, parte em direções opostas, levando Matty a um passeio por drogas lícitas e ilícitas. Pouco mais de um ano se passa e o protagonista, agora desintoxicado e casado com Susan, apesar de adotar um cotidiano tranquilo, ainda tenta entender o que aconteceu naquele dia e onde Annie foi parar. Ela morreu? Se sim, quem a matou? Os pesadelos podem servir de pista ou apenas para ressaltar a incapacidade de Matty de se desapegar da antiga amada.

No final da década de 90, muitos diretores migraram da película para o digital. Em “The Blackout”, Ferrara faz uma provocação a este movimento, deixando quase sempre uma câmera à vista. Dessa forma, ele nos instiga: já que o “verdadeiro” cinema acabou, qualquer um pode fazê-lo. A câmera que tudo filma, não diferencia a encenação da realidade. Se tudo é filme, nada é real; se tudo é uma ilusão, a impunidade é a lei vigente. Mickey é diretor e está realizando um remake de uma obra francesa. Em determinado momento, Ferrara coloca os projetos lado a lado – o clássico e o sujo. No cinema, nada é insubstituível. E na vida? A câmera grava os acontecimentos e a mente monta cenários particulares. Um dos grandes méritos de Ferrara é estabelecer uma atmosfera atordoante, na qual se torna impossível entender o que de fato está acontecendo. Tal truque imerge o espectador na perspectiva entorpecida de Matty, aumentando o suspense. Por outro lado, Ferrara faz questão de mostrar que aquilo é um filme. Sua narrativa é calcada no exagero, na marcação excessiva dos tons de azul e vermelho, das sombras, dos holofotes, da fotografia digital e do céu nebuloso – além, claro, da já mencionada presença constante da câmera.

A partir desta nova era, o fazer cinematográfico se transformou num esconderijo para seres naturalmente privilegiados? O fazer cinematográfico ainda existe? Qualquer um pode ligar uma câmera e filmar o que quiser. O ator hollywoodiano é tão perdido em seu próprio ego que se divide entre o homem fora e dentro do set? O que acontece no set é arte e o artista não pode ser perturbado. Mas e as leis morais? Quais? “Isso faz parte da cena?”, pergunta uma personagem. Talvez, ninguém sabe. Ferrara faz questão de expor visualmente a confusão entre encenação e realidade através da sobreposição de imagens. As fusões reforçam o vício de Matty por Annie – a montagem, por sinal, é um dos elementos principais para o êxito do filme. Ao longo da trama, com as informações que adquirimos, Ferrara ressignifica ambientes. Um simples quarto de hotel ganha a conotação de inferno astral na medida em que a paranoia do protagonista aumenta. O filme é gravado e armazenado em bobinas (meio físico); o digital é gravado e armazenado eletronicamente. O que é mais fácil de perecer ou de esvair com o tempo? Por que Matty não se esquece desse suposto trauma? O digital é o tormento do novo milênio. Não importa se Ferrara é satírico ou pessimista; o que importa é a sua capacidade de comandar projetos autorais, densos e sensuais. Ferrara não é antiquado, seus filmes exalam a sexo.

Matthew Modine, numa performance complexa e corajosa, interpreta um personagem autodestrutivo que não se conhece e que não sabe exatamente o que ama. Nesse sentido, a câmera é definitiva e o direciona à escuridão (literalmente). Modine atinge a proeza de soar tão insano quanto Dennis Hopper, com quem contracena. Poucos retratos da dependência química e dos abusos hollywoodianos são tão potentes.

“The Blackout” é um filme intrincado e hipnotizante. Muitos dirão que não passa de um delírio autoindulgente de Abel Ferrara, e pode até ser que seja, o que não diminui o impacto da carpintaria do cineasta nascido no Bronx.

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