Na década de 90, em meio ao governo Collor, o Brasil se transformou numa zona de incertezas e caos. As ruas fantasmagóricas e a fotografia em preto e branco sintetizam a desesperança geral. Paco vive com Manuela, sua mãe, uma senhora que teme pela solidão e sonha em visitar San Sebastián, sua terra natal. Quando ela diz que a escada está cada vez mais comprida, temos noção do que acontecerá. A TV propaga maus presságios e o paralelo estabelecido por Walter Salles entre o aparelho televisivo e a morte da senhora é inteligente – sem sinal, sem alento. Paco se vê completamente sozinho, a ponto de aceitar a oferta de Igor, um sujeito misterioso. Ele deve ir a Lisboa e entregar uma encomenda. Salles, com sua câmera, percorre a residência, expondo o vazio e a bagunça – nenhuma proposta é suspeita o bastante para mantê-lo nessa terra paralisada. O intenso flash confere uma conotação carcerária à foto do passaporte, indicando que Paco talvez esteja em apuros.
No velho continente, também em Lisboa, Alex trabalha como garçonete e é desrespeitada pelo patrão. O tempo passa muito rápido quando não se tem uma casa; quando a sensação de “estrangeira” atinge um estado crônico. Além da xenofobia, Alex nutre um relacionamento conturbado com Miguel, um músico frustrado que vive de negócios clandestinos e se entope de drogas. “O lugar ideal para se perder de si próprio”, afirma um personagem, referindo-se a Lisboa. A tal encomenda que trouxe Paco à capital lusitana era para Miguel, que é encontrado morto em seu apartamento. Perdido, o protagonista tem consigo somente um bilhete com o endereço e o nome de Alex, que, entendendo a situação, decide ajudá-lo.
Salles é um cineasta que não chama a atenção para si, focando, muitas vezes, nos rostos dos atores e na dinâmica entre os personagens. A princípio, a desconfiança toma conta das interações. É como se eles estivessem treinados a duvidar de tudo e a não se sentirem seguros. Um braço é uma arma, não um abraço; o amor é um escapismo repentino, não uma certeza. O que poderia ser mais simbólico do que vender o próprio passaporte? Alex admite a “não existência”, se limita a correria e confirma o fim de sua individualidade. Sem casa nem pátria, a única possibilidade é a sobrevivência diante da melancolia. Brasileiros, portugueses e angolanos compartilham o mesmo idioma, mas não falam a mesma língua – os sotaques os distanciam. Os belíssimos planos gerais reforçam a ideia de vazio e falta de pertencimento. Paco e Alex até tentam se evitar, todavia, após um equívoco envolvendo a entrega, o roteiro adere às convenções do suspense, unindo os dois numa perseguição.
A câmera agitada, as ruas escuras e, principalmente, a disposição labiríntica e opressiva de Lisboa servem à atmosfera tensa e ao comentário proposto por Salles e Daniela Thomas (co-diretora e roteirista). A fuga é uma constante na vida de quem tenta se redescobrir e uma novidade para quem se situa no limbo. É no carro, em direção a San Sebastian, que Paco e Alex fomentam intimidade e assumem a condição de almas à deriva, acolhidas pela circunstância. A praia, o abraço e o beijo… a delicadeza é uma virtude dos grandes diretores. Ali está a casa, o sorriso que não era ensaiado há tempos; ali está o amor e a cumplicidade. Em uma das sequências mais belas do filme, Alex canta a música “Vapor barato”, de Gal Costa. Paco fica encantado com a verdadeira face da moça. “Eu era assim. Quer dizer, eu sou assim”. O desfecho é tão sensível e sofisticado quanto o restante, deixando nítido que Salles trilharia um grande percurso.
Fernanda Torres desconstrói a imagem de uma jovem resignada e firme, destacando, aos poucos, suas dores e vulnerabilidades, até chegar a sua versão mais doce e genuína. Fernando Alves Pinto carrega traumas e angústias em sua voz e encarna a “solidão” com muita naturalidade. A química entre os dois é fascinante; seus rostos merecem uma observação meticulosa.
“Terra Estrangeira” é uma obra prima.