O crítico de cinema é um ser fascinado por grandes histórias, personagens complexos e narrativas inventivas. Alguns filmes em especial fomentam essa paixão e “Oldboy”, no meu caso, é um desses exemplos. É maravilhoso perceber que, ao subir dos créditos, você se viu tomado por sentimentos ambíguos e poderosos. A trajetória é dura, mas jamais frustrante. Obras assim mudam a sua personalidade, seu jeito de ver a vida e é por isso que, enquanto fonte inspiradora e transformadora, o cinema é inigualável.
Oh Dae Su é um homem caótico. Entregue a bebida, perde o aniversário da filha, arruma confusão em um bar e liga de um orelhão, se desculpando e prometendo presentes. Ele passa o telefone para o seu amigo e, segundos depois, graças a belíssima movimentação de câmera, não avistamos mais o protagonista.
Corta. Vemos uma portinha, que remete a uma jaula de um animal. Dae Su coloca o rosto para fora e implora por respostas. “Por que estou preso?” “Quem me colocou aqui?” “Quanto tempo ficarei neste quarto?”
Acompanhamos todas as suas fases, indo do ódio ao conformismo, do espírito vingativo ao “otimismo”. O ambiente é marcado por uma luz precária. Sua única companhia é a televisão, que o ensina algumas coisas, transmite emoções esquecidas e o escuta, mesmo que por pouco tempo.
Cada vez mais obstinado e treinado, Dae Su planeja uma fuga, mas é surpreendido com uma inusitada libertação. Após quinze anos preso em um quarto, ele acorda dentro de uma mala e cerra os olhos ao se deparar com os raios solares.
O protagonista quer contar sua história para alguém, quer entender sua vida, seus pecados e encontrar o sujeito que o torturou. Dae Su mal sabe como se aproximar de um ser humano, o toque é estranho e fundamental; ódio, afeto, insegurança e desejo se misturam em uma trajetória cujo destino não poderia ser mais doloroso.
Além de desfigurado, pelo tempo no cárcere, Dae Su foi acusado de ter assassinado sua esposa. Os óculos escuros mantêm o anonimato e expõem o vazio de um homem que não se identifica mais. Um homem cujo único propósito é a vingança. Um homem tão solitário que admite que se tornou um animal, perdido em uma selva na qual é constantemente monitorado.
Quem o destruiu? Por que alguém faria algo tão cruel?
Na primeira oportunidade que tem para testar suas habilidades de luta, Dae Su percebe que a TV foi uma grande aliada, no entanto, quando tenta se relacionar sexualmente com uma mulher, constata que apenas um lado seu se fortaleceu. Contraditório e complexo, o protagonista se aproxima de uma jovem chefe de cozinha, desmaia e acorda em seu quarto. Mesmo sabendo que é o desejo sedento por vingança que o move, Dae Su parece interessado em reaprender a amar e deixar ser amado. Ele envolve Mido na trama e a transforma na dama que precisa ser salva. Sua redenção é movida por cenas extremamente violentas, que envolvem (muitos) dentes arrancados e uma sequência antológica, em que o protagonista enfrenta vários capangas em um corredor escuro e imundo. Chan-wook opta por um plano sequência estiloso, conferindo uma vitalidade ainda maior à cena.
Honesto em relação à sua falta de humanidade, Dae Su come como um animal e demonstra o seu interesse sexual de forma destrambelhada, contudo, o roteiro é sutil e sincero o suficiente para expor a fragilidade de ambos os personagens. Mido também é solitária, anda em metrôs e vislumbra formigas – segundo ela, seres famosos pela união. A cena de sexo permite que o espectador sinta emoções distintas, indo da dor e da culpa, para o prazer e o carinho. Eles se amam e Dae Su precisa protegê-la antes que seu último rastro de humanidade se vá.
Todavia, esta não é uma obra na qual o herói salva a mocinha e mata o bandido. Chan-wook monta cenários e os desmonta com agilidade. O que é belo pode se tornar nojento e o que é injustificável pode, no fundo, fazer sentido.
Woo-jin é o meu antagonista favorito na história do cinema, não apenas por sua frieza, crueldade e capacidade de estar sempre um passo à frente de seu rival, mas, principalmente, pela fragilidade e sensibilidade. Por trás do ódio e dos planos malignos, existe um homem atordoado, que viu seu grande amor partir injustamente.
Woo-jin e Dae Su representam lados da mesma moeda, ambos foram consumidos pelo amor e agora se veem tomados por um ódio tão voraz, que os cegou.
Existe uma personagem chave na história que, por motivos óbvios, não revelarei quem é. Ela é a força que move o plano de Woo-jin e é a explicação pelo sofrimento de Dae Su. Plot Twists podem se tornar vícios de roteiro, saídas fáceis para histórias fracas, portanto, há de se enaltecer a carpintaria de Chan-wook, que subverte a trama a cada instante, dando nós na cabeça do espectador e deixando tudo para o final. Seria uma delícia dizer o que acontece, tudo que os personagens experienciam, porém, como crítico, devo apenas implorar para que assistam a essa obra prima. Será que Woo-jin consegue o que quer? O que ele quer? Os dois querem vingança. E depois? A verdade é que “Oldboy” explora os dois sentimentos mais poderosos dentro dos seres humanos. É um estudo sobre a proximidade entre essas forças, capazes de dominar as pessoas. No meio disso, Chan-wook torna as coisas ainda mais complexas, adicionando elementos controversos que enriquecem o seu texto e prendem o espectador até o último instante.
O que será que se passa na cabeça de Dae Su na última cena? É difícil de afirmar, seu rosto é contraditório e esbanja uma dor que nenhum ser humano jamais sentirá.
Imerso em uma escuridão inigualável, “Oldboy” é um passeio às profundezas de almas apodrecidas. Nesse sentido, a fotografia e a direção de arte combinam, optando por cores fortes e simbólicas, uma iluminação mórbida e ambientes precários. O vermelho, bastante presente, possui uma série de conotações – culpa, amor, ódio, violência e dor. O roxo está por todos os lados – lenços, paredes, caixas, escovas de dentes e adereços -, reforçando a enorme prisão em que o protagonista se encontra. Em contrapartida, a trilha sonora passeia entre batidas densas e melodias poeticamente melancólicas.
Chan-wook volta a usar seus recorrentes close ups, capazes de extrair sentimentos inalcançáveis e potencializar a tensão. Sua capacidade para orquestrar longas sequências de luta, brilhantemente coreografadas, é impressionante. Chan-wook não economiza na violência gráfica, entretanto, até nesse sentido ele é sensível, apostando mais na reação de quem tortura do que no grito de quem sofre. Dessa forma, o cineasta reforça o tema de sua obra e cria uma espécie de “humor negro” – outra faceta notável de sua filmografia.
É importante dizer que o diretor em nenhum momento julga as atitudes dos personagens, deixando essa faculdade para o espectador. De certa forma, seu olhar é bastante empático.
Mais uma vez, sua montagem é essencial para o funcionamento da narrativa. Ela organiza quebra cabeças, expõe sentimentos desconhecidos, potencializa a rivalidade e passeia perfeitamente entre presente e passado, realizando rimas visuais lindíssimas. A Split Screen, usada tanto no início – para mostrar o progresso do universo enquanto Dae Su seguia preso -, quanto no desfecho, é coerente e cria um efeito interessantíssimo. Os cortes precisos elevam a tensão – o que falar do final – e coferem agilidade à trama.
Choi Min-sik está incrível. Sua performance passa pela extrema fragilidade emocional do protagonista, que se enxerga como um animal solitário. O silêncio e a narração claudicante ressaltam a sua dor e incapacidade de se sentir humano novamente. Da mesma forma, seus ataques são provas de um homem consumido pelo ódio, evidenciado nos gritos e na persistência física. Sua curvatura denota uma melancolia incurável. Seu riso ao torturar alguém diz bastante sobre a sua personalidade. O ator passa por estágios desafiadores e distintos dentro do filme e acerta em todas as escolhas.
Kang Hye-jung foi a escolha perfeita para interpretar Mido, uma jovem ingênua, solitária e carinhosa que não entende no que se meteu, porém está disposta a lutar por amor. A atriz é carismática e charmosa.
Dito isso, o grande destaque é Yoo Ji-tae, que faz de Woo-jin um personagem tridimensional. O antagonista poderia ser apenas detestável, mas não, ele é muito mais que isso. Woo-jin sabe que a vingança e o ódio o levarão ao fim, e na sua cabeça, não há outro lugar para ir. Suas razões são fortes, seu choro é sutil – apenas uma lágrima escorre de seu olho – e sua perda de controle ao ouvir alguém falar mal de seu amor chama a atenção. Woo-jin também é frio, calculista e sabe exatamente cada passo que Dae Su dará. O ator é extremamente hábil ao conseguir controlar as emoções, expondo seu lado vingativo e maquiavélico e também ao “sair do personagem” quando precisa. A capa difere do interior e é por isso que Woo-jin é tão fascinante. Afinal, ele venceu? Alguém ganha algo nesse filme? Não, “Oldboy” é sobre sofredores, perdedores que fizeram por onde e não tiveram forças suficientes para sair do buraco.
É uma das grandes obras primas já realizadas. Prometi que não diria nada, mas aquela cena do elevador…
“Ria e o mundo rirá com você. Chore e você chorará sozinho”.
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