A fumaça inicial é o prenúncio de como será a trajetória da protagonista. A Nova Iorque do século 20 é bastante pragmática: a alta sociedade determina as regras do jogo e os seus participantes. “Uma moça é obrigada. O homem pode escolher”, diz Lily, referindo-se ao matrimônio. Ela não é rica e sabe que só será totalmente respeitada quando se unir a um “bom partido”. A interpretação é diária; as individualidades são deixadas de lado na medida em que o padrão é estipulado. Lawrence Selden é apenas um advogado, não pode ser considerado uma opção, ainda que seu coração não esteja alinhado às convenções sociais. O cinismo é generalizado. Lily precisa fingir que não fuma e que não aposta em jogos para seduzir Percy Gryce, um sujeito educado e abastado, porém desinteressante.
Durante um passeio pelo campo, ela encontra Lawrence. A paisagem e o céu aberto ressaltam a naturalidade de uma paixão impossível. Davies não precisa de muito para fomentar intimidade; o toque delicado e os planos fechados são suficientes. Ele avisa que só pode ajudá-la com o seu amor, o que, naquele período, tinha o mesmo efeito de uma ofensa. O amor é uma grande besteira reservada aos livros e, apesar da reciprocidade do sentimento, Lily não pode aceitá-lo. A trilha sonora melancólica evoca a tragédia levantada pelo roteiro. Os diálogos são belos e cortantes, pois advêm de almas que, diferentemente das demais, sonham com algo a mais.
Aos poucos, notamos que a protagonista simplesmente não consegue se casar por conveniência; ou seja, nunca se encaixará na sociedade. Ela recebe uma mesada da tia, mas gasta tudo em jogos e contrai dívidas. Gus, um desses “homens respeitados”, decide ajudá-la, no entanto, logo percebemos que sua bondade não é nada pura. Além de cobrar a quantia investida, ele clama por favores sexuais. O casamento já era quase uma forma de prostituição e Lily estava em maus lençóis, afundando em areia movediça. Em outro momento, Lawrence e a protagonista se beijam. O controle de Davies sobre a mise en scéne é irretocável; desejo e sofrimento unidos em suas essências. Quando Gus fala sobre um cheque, Lily, envergonhada, o puxa para um canto tomado pelas sombras.
A tia, ao descobrir que a mesada é gasta na jogatina, decide repreender a protagonista, que fica somente com 10 mil dólares da herança, enquanto Grace, sua prima, fica com o restante. Sem opção e cabisbaixa, ela concorda em ser propriedade de um homem rico. A fim de mascarar sua infidelidade, Bertha, que personifica a malícia e a frieza geral, inventa que Lily teve um caso com seu marido, destruindo, de vez, sua reputação na sociedade. A única forma de restaurar sua imagem, é apresentando as cartas apaixonadas de Bertha para Lawrence, todavia, ela se recusa a atrapalhar a única pessoa por quem nutre sentimentos reais.
A verdade é que, nesse universo, seres humanos altruístas e sensíveis são esmagados. Lily não suporta a pose que é obrigada a manter, detesta futilidades e adentrou o buraco sem ter tido a oportunidade de ser honesta consigo. A vida ao lado de Lawrence não seria “digna”, mas seria feliz. Os tons frios passam a acompanhá-la com frequência, a ponto de a vermos na completa escuridão, à deriva. Nesse sentido, o uso de contraluz é definitivo.
Engolida pela sociedade, a protagonista aceita qualquer emprego, afinal, a questão agora é a sobrevivência, não a dignidade. De assistente à costureira, ela trilha um caminho rumo ao abismo. Rosedale é o único homem rico que se compadece com sua situação, contudo, àquela altura, Lily, completamente cética, já admitiu seu destino. Sua aparência ganha um aspecto adoecido e denota exaustão. A direção de arte dita seu arco com muita sutileza. As mansões dos amigos com detalhes em dourado, a ópera e a casa da tia dão lugar a ambientes decadentes e moribundos – não poderia deixar de enaltecer o esplendoroso trabalho de reconstituição de época. A protagonista tem um último encontro com Lawrence, numa sequência arrebatadora. Ela pede desculpas por não ter abraçado seu amor e vai embora. Desde o início, Davies destacava a condição solitária de Lily, o que fica cada vez mais evidente. O último plano parece uma pintura e carrega a aura trágica da obra. As esperanças se foram; não existem sentimentos puros em Nova Iorque; só há espaço para convenções e falsidades.
O simpático Eric Stoltz está impecável na pele do humilde e carinhoso Lawrence. É o tipo de papel feito sob medida para um ator que não tem um grande alcance. Gillian Anderson, por outro lado, oferece uma performance cheia de nuances, transmitindo desconforto, paixão, sofrimento e resignação com extrema delicadeza. Seu rosto é algo a ser observado e a transformação em sua entonação vocal é a marca de uma atriz empenhada.
“The House of Mirth” é um filme poderoso e deslumbrante.