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Antoine Doinel e Christine Darbon se casaram e vivem num apartamento reservado, rodeados por vizinhos simpáticos. Ela dá aulas particulares de violino e ele vende flores em um quiosque próprio. “Perdi o interesse nisso”, afirma o protagonista, se referindo ao atual emprego. Nosso amigo cresceu e aparenta ser um marido carinhoso, todavia, segue no seu fluxo de incertezas e dificuldade de assumir compromissos.

Assim como em “Beijos Proibidos”, através de um corte seco, ele já aparece numa companhia hidráulica americana, onde consegue uma vaga por acaso. Suas escolhas denotam uma completa falta de vocação – um jovem adulto que perambula sem conseguir pensar em nada que o atraia verdadeiramente. Os livros sempre o fascinaram, por que não pensar em algo relacionado a escrita? Outro sintoma de sua ingenuidade é o fato de emprestar dinheiro para um caloteiro que, invariavelmente, cruza o seu caminho.

Não temos dúvidas de que Doinel ama sua esposa e Truffaut admira essa relação a partir de situações cotidianas. Quando a mãe de uma das alunas de Christine esquece de pagá-la repetidas vezes, eles pensam numa forma inusitada de evitar que isso se repita. Os diálogos na cama, antes de dormirem, são marcas de um casal que se admira. Doinel acredita que o tédio é algo inconcebível em sua vida. É o tipo de coisa que um garoto imaturo e bobo diria; alguém que não está pronto para admitir a previsibilidade diária. Nesse sentido, a direção de arte é perfeita, destacando, na residência, o amarelo, que ressalta a inocência de um amor puro, e o azul, que está ligado ao tédio e à melancolia.

Eis que Christine fica grávida. A reação do protagonista é tão espontânea e alegre, que chegamos a abrir um sorriso. Trata-se de uma conquista, um acontecimento exclusivo aos “adultos sérios” – o tutorial sobre parto natural que ele compra é uma sutileza sensacional. Truffaut, cuidadoso como de costume, volta a estabelecer paralelos entre as obras anteriores. As frases: “adoro a família dos outros” e “Alphonse nunca irá a escola” remetem à sua conturbada infância.

Na companhia hidráulica, Doinel conhece uma chinesa, por quem se encanta e inicia um caso. A nacionalidade de Kyoko acaba sendo essencial na medida em que conhecemos a natureza “malandra” do protagonista, que não é um grande fã de responsabilidades. A tela parcialmente preta, mantendo apenas o rosto dos personagens visível, evidencia essa conexão fajuta e corriqueira. Partir para outro continente significa se esquecer das conversas, agora triviais e cansativas, que têm com Christine.

O tom azulado e a escuridão no apartamento reforçam as mentiras de Doinel e as flores ocupam um importante papel na narrativa. No início, quando ficam destruídas, constatamos a preguiça e a falta de ambição do nosso amigo; por outro lado, as rosas dadas pela amante, colocadas na mesa de centro, simbolizam o descaso e a traição.

A separação é conduzida por Truffaut sem que palavras sejam necessárias. Christine se veste de gueixa, a trilha sonora é poderosa e a reação do protagonista é autoexplicativa. Ao lado de Kyoko, que confiou nele para ser seu parceiro, Doinel exala desconforto. A montagem pontua os dias igualmente monótonos, as refeições idênticas e a impossibilidade de se adequar a uma nova realidade – Doinel não consegue encontrar uma posição minimamente aconchegante para se sentar.

As convenções da vida adulta são desafios homéricos para ele. Talvez seja romântico demais, talvez não se conheça a ponto de definir prioridades, talvez não tenha tido a formação necessária para se tornar um grande homem. A verdade é que, depois de um tempo, Christine e Doinel voltam a se falar, deixando nítido o profundo afeto que nutrem um pelo outro. “Não gosto de coisas indefinidas e ambíguas” – ela é muito mais madura.

-Você é minha irmãzinha, minha filha, minha mãe…

-Gostaria de ter sido sua esposa também.

Em meio a solidão, o protagonista recorre a prostitutas, o que já acontecia em “Beijos Proibidos”, no entanto, dessa vez, não parece à vontade. No fundo, Doinel sente falta da bela tranquilidade que havia conquistado. Ser marido não era tão ruim assim e o protagonista estava disposto a tentar novamente. O pedinte cruza o seu caminho outra vez e ele o ignora…

No fim, o gosto que fica é doce. Nosso amigo está no caminho certo. Dito isso, não podemos cravar nada, o conhecemos e não podemos duvidar da sua capacidade de pôr tudo a perder, nem de sua ingenuidade.

A essa altura, Jean Pierre Léaud conhecia as particularidades e os trejeitos de Antoine Doinel de trás pra frente. Seu carisma, sua dinâmica com Truffaut e seu entendimento acerca das imperfeições do protagonista fazem dele uma figura adorável, relacionável e simplesmente impossível de se odiar.

“Domicílio Conjugal” é uma obra prima empática e humana.

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