“Angel Heart” é um dos raros filmes que funciona como suspense, terror e estudo de personagem. A carpintaria de Alan Parker é impressionante – o diretor desvenda o mistério através de sutilezas, que somente quem está assistindo pela segunda vez irá perceber.
Harry Angel é um detetive particular, contratado por um sujeito chamado Louis, que está atrás de Johnny Favorite, um cantor que o deve um favor específico.
Desde o início o cuidado dos realizadores é enorme. O protagonista guarda em sua gaveta uma pistola, quadro esse que, em princípio, simboliza uma ambiguidade: o perigo inerente ao trabalho, representado pela pistola, e, ao mesmo tempo, a cautela do personagem, no sentido de evitar o perigo, simbolizada pela gaveta, onde a arma permanece depositada.
Louis surge cercado por cortinas vermelhas, que denotam perigo e a forma como ele mexe sua bengala é bastante peculiar. Mesmo com pouco tempo de tela, De Niro dá um show.
A fotografia aposta em tons escuros, tanto nos ambientes abertos, quanto nos fechados.
As cores não são apenas uma “exigência” do gênero Noir, elas refletem o estado mental do protagonista, que, ao invés de clarear o caso, se vê cada vez mais afundado em uma neblina.
O figurino de Angel é constituído por tons neutros, que realçam cansaço e falta de energia.
Além de não encontrar novidades, todas as pessoas próximas à Johnny Favorite morrem misteriosamente e a suspeição recai sobre ele.
A jornada é exaustiva e as cores (ou a falta delas) são fundamentais para o desenvolvimento da trama e do arco do personagem.
O vermelho desempenha uma função primordial no filme e não se limita apenas a um significado. Como disse, Louis se torna uma figura perigosa graças aos tons que o cercam. Os cadáveres estão rodeados por um sangue colorido demais para ser plausível, que salienta a brutalidade das mortes.
Quando Angel transa com Epiphany, a água da chuva se transforma em sangue e assume não só a conotação anterior, mas a de culpa e pecado também.
A utilização do vermelho não para por aí, a direção de arte é minuciosa.
Alguns objetos são fundamentais para o desenvolvimento da narrativa.
O espelho reflete uma imagem. No início, Angel se olha com segurança, aos poucos vai criando dúvidas sobre si mesmo e, por fim, com o vidro estilhaçado, não faz a menor ideia de quem era antes de aceitar aquele caso.
O ovo é um belo exemplo de uma “brincadeirinha” que simboliza algo muito maior.
Sempre vemos a imagem de um elevador e um ventilador. Aquilo soa estranho e meio deslocado. No entanto, quando chegamos ao final percebemos que se tratava de uma belíssima rima visual. O ventilador, inclusive, está sempre presente quando alguém é assassinado.
A montagem é essencial para a fragilização mental de Angel. Sua feição desnorteada é intercalada por sequências, provavelmente do passado que também servem como pistas. Os cortes rápidos ressaltam sua confusão e medo.
A trilha sonora jazzística faz jus à época e aos lugares em que o filme se passa e, além disso, é imprescindível para gerar tensão.
O roteiro é primoroso ao manter um suspense instigante até o fim e, por tratar seu protagonista com tanto carinho. As figuras misteriosas que surgem durante a trama são importantes para o equilíbrio entre a atmosfera Noir e a aterrorizante.
Os elementos vudu, por sua vez, são primordiais para o tom místico e assombroso do filme. Parker utiliza vários planos-detalhe, aliados a uma montagem frenética para gerar impacto no espectador e no protagonista, que reage assustado.
Os símbolos religiosos estão por todos os lados. Um deles, em particular, quebra em uma luta envolvendo Angel. Esse simples momento indica sua absoluta solidão, nem mesmo Deus o apoiaria.
Isso faz todo o sentido, já que o protagonista nunca está acompanhado. Parker o retrata como um homem fadado à solidão. Os restaurantes que Angel frequenta estão sempre vazios e nos raros momentos em que há mais alguém, essa outra pessoa não se senta ao seu lado.
Mickey Rourke, um dos atores mais talentosos de sua geração, dá aqui a sua melhor interpretação. Ele faz do protagonista um sujeito charmoso, que, rapidamente, transforma uma “consulta” em uma cantada sem ser canastrão e que se mantém num estado de solidão, exposto através de olhares que denotam uma profunda melancolia. Mesmo acompanhado, Angel sabe que está sozinho. O único contato real é com Epiphany (até mesmo o nome diz algo). A fotografia muda a abordagem, explorando cores vivas e Parker usa planos abertos para expor essa transição, que mais tarde é subvertida pelo vermelho.
O protagonista mantém seu lado sedutor, mas nunca esconde suas fragilidades (a não ser em um determinado momento). A arma na gaveta retrata esse medo, que é posto à prova em um caso tortuoso. Gradativamente, Rourke muda sua entonação, assim como sua expressão corporal. No fim do filme, ele está completamente sugado e essa transição é feita de forma magistral pelo ator, que atinge extremos com muita facilidade.
A cena na igreja talvez seja o melhor exemplo disso. Enquanto Louis ri e não se impressiona com as “aventuras” do detetive, Angel treme de nervoso – uma relação de dominância.
Rourke ainda confere sutilezas como o assoo do nariz, que reafirma a sua fragilidade.
Em contrapartida, De Niro está sempre em uma posição de autoridade. Ele consegue esse respeito através de trejeitos muito bem calculados e uma entonação falsamente amigável. Há algo muito estranho em Louis, mas é praticamente impossível não obedecer a suas ordens.
O final é memorável e coroa um trabalho extremamente cuidadoso da equipe. Obviamente não revelarei o plot twist, digo apenas que é um desfecho perturbador e que Rourke alcança uma carga dramática assustadora.
“Angel Heart” é, sem dúvida alguma, um dos filmes mais subvalorizados da década de oitenta.
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