Skip to main content

“Fellini’s Casanova” é a prova de que o cineasta italiano, cujo nome está no título, foi um dos maiores autores da história da sétima arte. O seu Casanova é uma figura trágica, mítica e relacionável. A começar pelo estupendo trabalho de maquiagem, que evita o charme, transformando o “galã” de Veneza numa criatura esquisitíssima.

Em sua primeira aparição, ele transa com uma jovem a fim de satisfazer os desejos voyeurísticos do embaixador francês. O sexo é uma encenação, parece uma dança, e o contra-plongée faz com que o protagonista cresça de tamanho. Depois, ele fala sobre suas formações acadêmicas e temas importantes, no entanto, não há mais ninguém ali.

Casanova era um sujeito inteligentíssimo, porém influenciável. O protagonista queria ser lembrado por sua erudição, todavia, a alta sociedade italiana não estava interessada em literatura, engenharia ou política. A direção de arte cria cenários monumentais, dominados por objetos valiosos e cores intensas – destaque para o vermelho e alguns toques de dourado. Os figurinos caminham numa linha tênue entre o exagero e a exuberância. As roupas volumosas retiram a identidade daqueles seres, caricaturas ambulantes.

A marquesa parisiense sonha com a imortalidade, em renascer no corpo de um homem e, para tal, precisa fecundar. Sua sala de tesouros ressalta o vício das pessoas pelo poder.

Em Roma, Casanova é convidado para o palácio de um Lorde. A disposição dos personagens no quadro é caótica, as pinturas ocupam paredes descomunais, todos se comportam como animais e a luz vermelha ratifica isso. O protagonista é agraciado pelos nobres por sua fama de mulherengo e pelas incontáveis experiências sexuais que teve, não por ser um estudioso. Tudo naquele ambiente está fora de tom. Casanova fica incomodado com a vulgaridade e o desprezo dos poderosos pela intelectualidade. Ele é desafiado por um bruto qualquer a uma competição de resistência: quem transa mais por uma hora. A princípio, uma afronta, a proposta muda de figura quando uma princesa confere uma conotação científica ao absurdo.

Essa é uma das cenas mais bizarras e degeneradas já postas em tela, não pelo sexo, mas pela robotização dos movimentos, a apatia dos rostos e o êxtase da multidão, que grita como se estivesse num estádio de futebol.

Fellini apresenta a decadência da sociedade italiana, presa a bens materiais, relações ocas e a uma inversão de valores impressionante. Quanto maior a riqueza e a megalomania, maior o descolamento da realidade. O protagonista almejava grandes saltos, a posição de mito e a fama. Ele vence o desafio e os nobres o erguem. Erudito? Casanova era o símbolo da decadência, um homem que percorreu diversos países e é lembrado por ter colecionado amantes que não o amavam.

Como Casanova atingiu esse status com uma aparência, no mínimo, peculiar? Sua estranheza reforça o desinteresse das mulheres acerca de relacionamentos. Nesse sentido, a escultura fálica do Lorde romano define a cultura da vulgarização. Elas não querem que seus corações sejam atingidos, somente os orifícios. Objetivamente, o rosto de Casanova o coloca próximo das criaturas citadas, e, em se tratando de uma sociedade que nega qualquer tipo de complexidade, podemos dizer que ele estava amaldiçoado a viver no limbo da “inexistência”.

O protagonista plantou essa semente, não aceitava o esquecimento e a falta de atenção, logo, não é uma vítima. Casanova ganha a empatia do espectador justamente por ser falho e contraditório. Além de ser conhecido pela sabedoria, qual era o seu grande sonho? O amor verdadeiro.

“Sua beleza espiritual atrai o artista que há em mim”. Não é qualquer mulherengo que diz algo desse tipo. Casanova não menospreza esse sentimento, não se declara para seduzir. Ao ver Henriette tocando o violoncelo, ele chora copiosamente; percebeu, naquele momento, que não havia volta, seu coração era dela. “Tenho medo da minha felicidade” – claro, não havia experimentado essa sensação antes.
“Quero passar o resto da minha vida com você, doce Henriette”.

Diferentemente das mulheres com quem transa, propositalmente exageradas, seja por atributos físicos (deformações), seja pelo comportamento, seja pelo figurino, seus amores eram delicados como pérolas. O quarto que dividem é marcado por cores contrastantes. O vermelho e os tons alaranjados pontuam a intensidade do amor, enquanto o azul, presente nas janelas e no canto da parede, indica uma certa frieza. Henriette simplesmente some, foge sem maiores explicações.

A névoa e a fumaça permeiam a trama, entretanto, em Londres, engolem completamente as paisagens. As escolhas visuais conversam com a trajetória de Casanova. A fotografia opta pela escuridão desde o início, e ela se torna, gradativamente, mais impactante. Na capital inglesa, o vazio das estradas se espelha no peito do protagonista, que veste seu traje fúnebre. Os planos dele caminhando em direção ao nada são extraordinários, de uma rara plasticidade.

Em Berna, ele conhece Isabella, por quem também se apaixona. Fellini posiciona sua câmera acima do ombro da moça, enquadrando Casanova entre ela e a lareira. O fogo simboliza sua fama “quente” e a dor acumulada com o tempo. Assim como Henriette, Isabella é dona de uma beleza angelical; suas roupas e o ambiente que habita são simples. Dessa forma, o cineasta diferencia o amor da libertinagem. As coisas não dão certo e, na cidade seguinte, numa sequência quase cartunesca, Casanova transa com cinco mulheres. O sexo é a maneira que ele encontra para extravasar, uma tentativa de preencher um enorme vazio.

Os cortes secos salientam essa condição e a montagem é fiel ao material base, estruturando o filme como um diário pessoal.

A neve é um outro componente narrativo fundamental, principalmente na parte final da vida do protagonista. Seu último grande amor, o único que realmente o compreende, não poderia ser mais adequado: uma boneca mecanizada. Quando dormem juntos, é ela quem fica por cima e, pela primeira vez, enxergamos um prazer genuíno, não um animal.

Casanova terminou sozinho, escorado em cantos de mesa, em ambientes insalubres. No seu último sopro de esperança de ser levado a sério, um grupo de jovens gargalha de sua leitura. Ele retorna, cabisbaixo, à escuridão. O desfecho é poético e dilacerante.

Essa é a história de um homem famoso por algo cujo intuito era apenas atrair pessoas fúteis e preencher o vazio amoroso.

No centro, está Donald Sutherland, que oferece uma das melhores performances de todos os tempos. Seu Casanova é sedutor, sensível, frágil, vulnerável, narcisista e melancólico. Ele atravessa décadas, países e fases debaixo de muita maquiagem, tornando o protagonista cada vez mais humano, complexo e fascinante. Sua voz e traços marcantes fazem deste um casting “óbvio”. Adam Driver seria um bom nome para um hipotético “remake”.

“Fellini’s Casanova” é um épico, uma obra prima com todas as excentricidades de seu mestre. Um filme sobre a pior das solidões e a árdua busca por sentido.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!