Encarregada de cuidar de Amanda, uma ex-bailarina, Maud é uma jovem enfermeira fervorosamente religiosa que se vê como a “salvadora” de sua paciente. “Ele me guia” e “Ele está em todo o lugar” são frases repetidas pela protagonista, que, por traumas do passado, optou pelo refúgio na retórica mais simplista e covarde possível. Amanda não é uma mulher perfeita, seu narcisismo é notável e a relação que mantém com uma moça aparentemente contratada talvez não seja a mais saudável. Considerando a sua condição debilitada, essas questões sequer deveriam ser discutidas. Vou além, a obrigação da enfermeira era tornar a vida de sua paciente a mais prazerosa possível em seus últimos meses. Negar a felicidade de Amanda está diretamente ligado à forma pretensiosa como Maud se auto intitula. Se anule, apenas exista, crie falsas expectativas e espere uma resposta inexistente, mas não obrigue os outros a seguirem esse medíocre e tortuoso caminho. Maud é passivo-agressiva, adora apontar dedos, mas não para si.
No auge de sua vulnerabilidade, Amanda enxerga no cuidado da protagonista o afeto que não recebia há anos, a ponto de “fingir” que sentiu a presença divina. No entanto, ao receber um telefonema, descobre que Maud não se importava com ela e que, na verdade, era uma espécie de experimento para a jovem radical, que queria salvar sua “alma imunda”. Afastar a dançarina de seus amigos era o seu plano?
Após a demissão, a protagonista segue uma jornada solitária e desesperada em busca do perdão de Deus e da redenção por não ter cumprido sua missão. Desiludida e apavorada pela falta de respostas, Maud tenta agir como um ser humano em sã consciência, mas não consegue. Pessoas tendem a assustá-la e a sua maneira de se aproximar denota uma total desconexão da realidade.
Em determinado momento, ela finalmente escuta uma voz, entretanto, assim como tudo que soa místico, é uma mera idealização de sua mente.
O fim não poderia ser mais preciso e incisivo – um choque entre a negação/radicalismo e a dura realidade.
A diretora estreante Rose Glass escolheu o gênero certo para um tema tão relevante. “Saint Maud” só poderia ser um horror psicológico. O primeiro plano do filme é um plongée – conhecido também como ponto de vista de Deus -, que já dá uma breve ideia sobre o caminho da protagonista. A ligação não é instantânea, todavia, quando adentramos a trama, nos lembramos do sutil início. Glass usa contra-plongées justamente para colocar Maud numa posição de imponência e controle, podendo ter a conotação de “superioridade” em relação às pessoas que cruzam o seu caminho. Evidentemente, esse sentido se restringe à imaginação da protagonista. Nosso ponto de vista é o de Maud e a diretora “empresta” ao espectador uma ótica nociva e turva, na qual tudo está invertido. A protagonista não é “dona” nem de seu corpo e de sua mente, como pode se comparar aos outros?
Glass também assina o roteiro, que é enfático ao expor os danos do fanatismo religioso. Não diria que o texto “demoniza” a protagonista, contudo, sem dúvida alguma, a coloca numa posição em que o espectador é incapaz de criar qualquer tipo de empatia. Isso é um defeito? Não, pelo contrário, afinal, em se tratando de um filme que vai contra pregações excessivas e qualquer tipo de radicalismo, a personagem central deve representar uma ameaça, algo que o espectador não deseja ser e Glass se sai muito bem.
O princípio básico para evitar qualquer tipo de desespero capaz de levar uma pessoa a se escorar em muletas imaginárias e simplesmente esperar, em vez de agir em busca de felicidade e satisfação, é a socialização. Maud vive em seu próprio universo, o que fica evidente através da utilização de planos fechados e da câmera na mão. Certas coisas acontecem e seu rosto processa outra informação, suas reações são arrepiantes. A movimentação inesperada e “solta” potencializa essa atmosfera esquisita e obscura. Planos-detalhe são muito bem inseridos para tornar uma cena mais intimista, tensa e angustiante – aquela em que Maud arranca um pedaço de sua pele e a que coloca pregos em seu sapato são memoráveis.
Na rua, Glass a enquadra de costas, podendo também optar por planos abertos – ambos enfatizam o seu deslocamento. Em uma sequência que se passa num restaurante, a protagonista tenta agir normalmente – forma de chamar a atenção de Deus – e a montagem, cujos cortes ficam cada vez mais intensos, reforça que todos ali estão felizes e têm alguém, menos Maud. Sua psique é levemente trabalhada pela montagem, que sugere que ela se envolveu em alguma tragédia quando era enfermeira num hospital.
O elemento narrativo mais importante e que de fato distancia a protagonista dos demais, é a baixa profundidade de campo, que ressalta sua solidão e a incapacidade de escutar opiniões/conselhos alheios. Maud está numa caverna, julgando, à espera de sua próxima tarefa.
A fotografia mergulha a protagonista na mais profunda escuridão – sem respostas, sem nada. O verde simboliza a sua confusão mental e o vermelho não está ligado ao amor divino, mas a violência. A direção de arte segue uma linha similar, colocando Maud em um universo descolorido e apertado – triste e sem espaço para concessões.
Os livros escritos por Amanda em sua estante e seus quadros, cobertos por panos, são objetos importantes em sua caracterização. Destacam, ao mesmo tempo, seu narcisismo e sua melancolia – o que já foi uma realidade, agora está escondido.
O design de som trabalha brilhantemente a personalidade da protagonista, transformando ambientes barulhentos em espaços silenciosos – ela existe apenas na própria mente.
A trilha sonora é extremamente sombria e atmosférica.
Morfydd Clark oferece uma performance digna de aplausos, conseguindo, através do olhar, dar vida a uma personagem que vive em uma realidade paralela. Ela não faz esforço para ser ingênua, inocente, assustadora e imprevisível. Sua expressão facial ao pisar em pregos define a qualidade de sua interpretação – dor e orgulho se misturam.
“Saint Maud” é um filme instigante e genuinamente aterrorizante. Um estudo de personagem que serve de alerta e denúncia.