Existem filmes tristes e filmes devastadores. “Vivre Sa Vie” está na segunda categoria, graças a genialidade de Jean-Luc Godard e a atuação memorável de sua mulher, Anna Karina.
Estruturado em capítulos – doze no total -, “Vivre Sa Vie” prova que uma obra complexa não é necessariamente difícil. Godard encontra a essência paradoxal da vida de uma maneira muito bela e melancólica. A protagonista começa de lado, nas sombras e a trilha anuncia o tom trágico de sua trajetória.
Nana é uma mulher invisível, repleta de sonhos e desejos, mas completamente ignorada pelo, até então, marido. “Eu achava que era importante falar com você, mas não acho mais”. As palavras se esvaziam de sentido e tudo que conseguimos perceber é o ar de superioridade do homem e a solidão da protagonista. Essa sequência é um grande exemplo da simplicidade de Godard, que filma o casal de costas, sem deixar, nem por um segundo, que o espectador veja o rosto deles, expondo a total desconexão e o vazio daquela conversa.
Nana quer ser atriz, mas é funcionária em uma loja de discos e não pode entrar na própria casa, pois deve o aluguel. Com pouquíssimos cortes, Godard realiza um retrato quase documental de uma jovem mulher que vive uma vida pacata e difícil. Ele é um diretor que adora variar ângulos, experimentar novas formas de observar uma ação, o que é percebido durante todo o filme.
Nana quer ir ao cinema, quem sabe se distrair um pouco. No entanto, este talvez seja o momento em que ela mais se identifique com alguém, o mais triste e o que deixa claro para o espectador qual será o seu desfecho. Na tela está Joana D’arc, na obra prima dirigida por Carl Theodor Dreyer. Um ícone feminino em seus últimos suspiros antes de ir para a fogueira. O choro de uma ecoa na outra, afinal, mesmo sem nenhum tipo de ligação, ambas são mulheres cujos principais anseios foram negados e destruídos.
No dia seguinte, a protagonista está na prisão. Ela foi denunciada após pegar um dinheiro que havia caído no chão. A situação não faz muito sentido, já que, no fim, Nana devolveu a quantia. A maldade a cerca, sendo exposta nos planos cada vez mais fechados no rosto da protagonista, que responde com uma voz taciturna a pergunta do policial sobre quem poderia ajudá-la financeiramente: “Amigos, às vezes. Rapazes, às vezes”. As transições se tornam mais aceleradas e Nana não encontra outra saída a não ser a prostituição. O sim passa a ser um mecanismo, bem parecido com o dos brinquedos de pilha. De repente, aquela garota que sonhava com o cinema e com um grande amor, se deitava com qualquer homem disposto a pagar.
-Qual o valor?
-Não sei, você escolhe.
Nana o leva para o quarto, o seduz, entretanto, parece estar sendo estuprada. As cortinas não são fechadas por privacidade, mas por vergonha, o medo de assumir para todos que sua vida se tornou um mero ato de sobrevivência.
Nem sempre entendemos o porquê de um ângulo optado por Godard, muitos deles fogem de qualquer convenção e acabam incomodando o espectador. Queremos ver a coisa como um todo e ele cisma em focar em algo que não parece relevante. Soa sem sentido, sendo, na verdade, genial. A câmera de Godard esbanja empatia, logo, se a sua protagonista não se sente bem, o espectador deve experimentar as mesmas sensações. “Fugir é um sonho”.
Em determinada cena, Nana encontra uma amiga, companheira de profissão, que relata as complicações de sua vida, a fuga do marido e a dificuldade que é cuidar dos filhos. Em nenhum momento sequer sentimos a dor daquela mulher, seus relatos são duros, mas Godard nunca escode que este é um filme sobre Nana, e suas reações, assim como no cinema, são devastadoras. Ela se enxerga nos outros, tem um olhar carinhoso, chora e, muitas vezes, para encobrir a realidade, inventa uma que a tranquilize. Não, Nana, você não é responsável pelo vazio que sua existência se tornou, são apenas circunstâncias impossíveis de se driblar e em um mundo de homens, não é nada simples ser uma mulher.
Depois, um sujeito se senta ao seu lado e diz as maiores barbaridades possíveis. É um teste, ela foi aceita, tem um dono, um cafetão. Em vez de se sentir suja, Nana demonstra ânimo. A protagonista quer ser amada, ser tratada com o carinho que merece. Os dois rostos no mesmo plano – algo que Godard havia evitado até então – expõe a profunda ingenuidade de Nana ao acreditar que Raoul realmente se importa com ela. Ela era um objeto.
A montagem reafirma a condição estritamente profissional de suas relações sexuais, seu rosto não mente, mas o dinheiro está aparecendo e deve ser valorizado. O diretor coloca uma situação cômica e sutil no meio do furacão e prova que, além de gentil, é um profundo conhecedor da natureza humana. Nana coloca uma música e dança em frente aos homens, que não demonstram o menor interesse. É inconveniente e constrangedor, é o que sua profissão pede e, mesmo parecendo uma cena ingênua, se torna uma das mais tristes do filme, pois salienta que toda aquela espontaneidade e graciosidade anterior havia sido, definitivamente, vendida. Sua alma estava em algum lugar de Paris, angustiada e gritando por socorro.
Os quartos em que Nana “atua” conversam diretamente com a sua vida – vazios, tristes e idênticos. Nesse sentido, o design de produção merece elogios por seguir a proposta simples e realista idealizada por Godard.
No bar, ela encontra um filósofo que diz coisas absolutamente maravilhosas e sinceras. Pensamentos excessivos podem ser fatais, mas a falta deles não te tiram do lugar. Precisa existir um balanço entre o silêncio e a fala. Nossas mentes pregam peças e são os erros que nos tornam pessoas verdadeiras.
-Não seria o amor a principal verdade?
-Não, pois em sua grande maioria, o amor é falso.
São frases e ensinamentos que a consolam e a tornam mais madura e consciente.
Seu próximo cliente, um jovem que já havia aparecido anteriormente, conversa com ela, mas não temos acesso ao som. Diante de tantos diálogos e palavras que perderam a verdade, o silêncio é um sopro de esperança, uma novidade, quem sabe um amor. São dois momentos consecutivos que enchem o espectador de uma esperança passageira. O último capítulo traz à tona tudo que foi discutido, a trajetória e as escolhas forçadas de uma mulher que sofreu a todo instante.
Godard, assim como a maioria de seus colegas da Nouvelle Vague, amava Paris. Sua câmera é informativa, pouco se intromete, e sua composição de quadros é exuberante.
A fotografia em preto e branco dita o tom melancólico da obra e é fundamental para relacionar a protagonista com a sua própria alma – vista, muitas vezes, nas sombras.
A trilha sonora é direta, bela e devastadora. Não há variações de melodia, são as mesmas batidas que seguem até o fim.
A montagem é extremamente coesa em relação a estrutura narrativa, intercalando de forma brilhante os capítulos. Sua presença é bem menos “intrusiva” do que, por exemplo, em “Acossado”.
Anna Karina está brilhante. Sua performance minimalista é poderosa, sendo a sua principal força o rosto, o olhar machucado e os olhos chorosos. A atriz olha constantemente para a câmera e é difícil não se arrepiar com a honestidade de sua atuação.
“Vivre Sa Vie” é muito provavelmente o ápice do Godard humano e empático.
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