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“Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” é um filme de uma ambição impressionante. Utilizando sobras de seu curta-documentário, “Sertão de Acrílico Azul Piscina”, o diretor Karim Ainouz realizou uma das obras mais poderosas nacionais dos últimos tempos.

José Renato, um geólogo, viaja para o Nordeste a fim de encontrar as melhores áreas para a construção de um enorme canal. Sua voz, inicialmente tranquila e “profissional”, gradativamente, fica embargada e perde a força na medida em que ele adentra a miséria e a aridez daquela região, que o faz sentir cada vez mais falta de sua amada esposa.

Ainouz nos transporta para as entranhas do Nordeste, expõe uma secura e uma desesperança difíceis de se encontrar em outro lugar. Por incrível que pareça, há algum tipo de magia no olhar das pessoas que “cruzam” o seu caminho, talvez por terem aceitado sua condição, provavelmente por serem ingênuas e ignorantes. A questão é que, por mais triste e desoladora que seja a situação, os núcleos familiares são unidos.

O diretor nos mostra uma região esquecida, muitas vezes deixada de lado e compõe um retrato muito honesto e duro. Alguns serão desabrigados, outros continuarão com suas existências medíocres.

Se por um lado Ainouz tem um propósito documental, sua escolha pelo Nordeste como pano de fundo da parte ficcional se prova extremamente acertada. José ganha a vida mexendo em pedras, mas aprendeu a amar as flores, graças a sua esposa, uma botânica. Ele viaja porque precisa, porém não aguenta mais a estrada, que parece infinita. O meio que o circunda não lhe traz qualquer tipo de alívio, apenas o aflige. Seres e ambientes vazios, uma solidão acachapante e a poeira transformam uma viagem a trabalho em um confessionário, no qual o espectador é único amigo de José, que, aos poucos, faz revelações sobre sua vida que conversam diretamente com os locais visitados.

A proposta inicial já era melancólica, no entanto, não imaginava a proporção da obra, que caminha numa espiral de sofrimento e desesperança impressionante. José volta porque a ama, contudo, e só descobrimos isso na metade do filme, ele não tem mais ninguém. Sua esposa o abandonou e essa viagem com pretensões geológicas era, na verdade, a sua forma de tentar seguir em frente, de esquecê-la. O que, infelizmente, não acontece, já que, a cada destino sua saudade e paixão só aumentam. “Eu não me aguento mais”. Em determinada cena, José diz que costumava se sentir como o super-homem e que decepções assim, inesperadas, são choques de realidade. Ficamos frágeis, imóveis e paralisados. Ir ao fundo do Nordeste não era um prazer, apenas uma maneira de se mover e de, quem sabe, voltar a viver. “Sinto amores e ódios por você. Essa viagem tá me levando pra trás, pro dia que você me deixou”. Se num primeiro momento José admite que não consegue escrever poemas românticos, ao longo do trajeto, quanto mais arrasado fica, mais coisas poderosas, belas e arrebatadoras descarrega de seu peito. “Não consigo mais trabalhar, fico olhando para flores e pessoas”.

Os motéis e as garotas de programa evidenciam sua solidão e a triste realidade nordestina. Todas as mulheres – sem exceção – que aparecem são prostitutas, infelizes ou miseráveis. No único momento em que José interage com uma pessoa, pergunta a uma “dançarina” se gostaria de ser amada. Sem jeito e esbanjando precariedade, ela afirma que sim, sabendo que é algo distante e que deve aceitar homens sujos que pagam um dinheiro qualquer.

O mais fascinante disso tudo, é que nunca vemos José. O filme foi inteiramente realizado com arquivos do passado, “gravado” em primeira pessoa. Escutamos sua voz e a simples junção de sua fala claudicante com imagens desoladoras é suficientemente poderosa, trágica e emocionante.

Irandhir Santos é um grande ator e a prova de seu talento é que não precisamos vê-lo para compreender seus sentimentos. A mudança na entonação é meticulosamente pensada, sem que soe artificial, pelo contrário, há um realismo inegável nessa obra. O excelente roteiro, além de guardar surpresas para a hora certa, foca em um linguajar cotidiano e honesto, sem qualquer tipo de “enfeite”.

A forma como Ainouz manuseou sua câmera em boa parte das sequências – imagens tremidas – vai ao encontro tanto da situação caótica nordestina, quanto da melancolia de José. Nesse sentido, a baixa profundidade de campo é um efeito muito bem utilizado. No entanto, o que mais impressiona, é que o filme não parece um remendo, mas algo pensado com muita antecedência e cuidado. A montagem é simplesmente magistral, conseguindo encapsular as angústias e dores de um povo e uma região e de um homem ferido. A escolha pelo trajeto é perfeita, fundamental para essa melancolia gradativa, traduzida por lugares precários e inabitáveis. Os cortes abruptos também emulam o desespero do protagonista.

As imagens foram muito bem escolhidas. Destacaria aquela em que vemos uma jovem sorrindo e José a aprecia, relembrando da esposa.

O desfecho nos dá uma leve esperança, um simbólico e literal mergulho “na vida” – planos exuberantes.

Como o próprio José insinua, talvez o título mais apropriado fosse “Viajo Porque Preciso, Não Volto Porque Te Amo”.

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