Chris é o que chamamos de “rebelde relacionável”: está sempre sujo de tanto trabalhar e é mal visto pelas autoridades locais. Sua visão sobre o mundo não faz jus à sua idade, mas às experiências que enfrenta diariamente. “Você é apenas um garoto. Aproveite enquanto dura”, diz ele ao irmão caçula, provando que perdeu a inocência há bastante tempo. Tim acabou de completar dez anos e prefere comer lama e tinta ao invés de carne. Seria isso uma peculiaridades comum à sua fase ou um reflexo da carência de afeto em casa?
John é o pai, mas parece ter se esquecido de como exercer tal função, mantendo uma relação “profissional” com Chris, que cuida de seus porcos. Pouco presente e alheio, ele passa as noites observando uma pintura que retrata a família completa (sua esposa faleceu). Esses olhares ressaltam que a criação dos filhos é um fardo, não um prazer. Não sabemos se John era diferente, apenas que boa parte de sua energia se foi junto com a esposa.
Eis que surge Deel, irmão de John, que saiu da prisão e pretende reatar laços perdidos. O carro de “luxo” e a camisa vermelha servem para caracterizá-lo como um intruso, no entanto, a princípio, suas pretensões soam normais. Através das conversas entre os dois, descobrimos que John, por traumas do passado, se afastou de qualquer contato humano e se mudou para o interior dos Estados Unidos. Aos poucos, Deel prova ser um sujeito imprevisível, cujas intenções são obscuras.
Ele usa sua retórica ardilosa para intimidar os sobrinhos e Gordon Green utiliza um contra-plongée para reforçar sua posição ameaçadora. Deel está lá para pegar umas moedas de ouro que seu pai havia deixado para os filhos, que, segundo John, são amaldiçoadas. Tem mais: a mãe dos garotos era sua namorada e foi seduzida pelo próprio irmão. A situação fica tensa sem que o cineasta precise se exceder (esse não é o seu estilo). A partir de uma montagem paralela, concluímos que eles são figuras opostas. John faz esforço para ser atencioso com os filhos e conta sobre a lenda das moedas, enquanto Deel, no auge de sua ganância, vasculha a casa – diferença visível também nas tonalidades vocais.
O embate, então, acontece da forma mais visceral e brutal possível, frisando o lado canalha e psicopata de Deel, que assassina o irmão friamente. Chris, que já estava acostumado a acumular responsabilidades precocemente, assume o posto de “homem da casa”, tendo que ser, para Tim, um irmão, um amigo e um pai. Eles fogem com as moedas, dando início a uma perseguição que remete ao clássico “The Night of The Hunter”, de Charles Laughton, estrelado por Robert Mitchum.
Gordon Green tem um arsenal poderoso de artifícios narrativos. As freeze frames destacam e imortalizam imagens impactantes; a câmera lenta, se acompanhada de uma movimentação atordoante, potencializa a tensão e o caos – caso contrário, confere uma beleza a mais a planos que já seriam belos. “Undertow” se passa, majoritariamente, ao ar livre, na natureza, que ganha a conotação de aliada dos garotos. Terrence Malick é, sem dúvida alguma, uma das grandes inspirações de Gordon Green e fiquei feliz ao saber que ele produziu o filme. Seus traços mais reconhecíveis estão nos planos que contemplam as árvores e as plantas, tratadas como elementos primordiais para a narrativa – o ambiente é um personagem à parte.
Gordon Green poderia se concentrar simplesmente no jogo de gato e rato, mas não, seu interesse está na relação entre Chris e Tim, que, diferentemente de Deel e John, se amam e não poupam esforços para demonstrar afeto. O cineasta dá espaço para aquilo que considera fundamental, investindo em sequências silenciosas, na qual vemos os dois brincando e cuidando um do outro. Durante o percurso, eles conhecem algumas pessoas e sorriem ao serem acolhidos e bem tratados, no entanto, percebem que devem continuar a solitária trajetória. A montagem é importante ao espelhar os passos dos irmãos e os de Deel, que se aproxima.
“Estava pensando sobre o papai… como ele falava conosco… como se tivesse medo. Quando me olhava nos olhos, às vezes, acho que ele nem sabia quem eu era”. Tim e Chris estão sozinhos há tempos e o fato do mais velho admitir algo tão triste assim, só reafirma a sua prematura maturidade. Em determinado momento, o protagonista ajuda uma garota debilitada, que lhe oferece abrigo. Pela primeira vez, Chris abandona a rigidez digna de um líder cuidadoso e expõe sua total vulnerabilidade: “Não tenho para onde ir. Ninguém ao meu lado. Viu só?”
O reencontro, enfim, acontece. Se a maldição das moedas é real, Deel é o demônio em carne e osso. Chris entende que a única forma de seguir adiante é enfrentando as garras violentas do diabo. Gordon Green, com sua abordagem poética, consegue nos surpreender. Ambíguo, o desfecho deixa o espectador aflito e orgulhoso de seu protagonista.
Josh Lucas encarna Deel como uma figura sinistra e brutal. Seus trejeitos e capacidade de se adaptar às diferentes situações são perturbadores.
Jamie Bell, que é um dos atores mais interessantes da atualidade, oferece uma performance dura e comovente, combinando, brilhantemente, determinação, empatia, compaixão e melancolia.
“Undertow” talvez seja o filme mais subestimado que assisti este ano.