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O primeiro plano de “Raging Bull” apresenta Jake LaMotta sozinho no ringue, carregado pela fumaça, simulando socos em câmera lenta. A trilha sonora confere uma dramaticidade tocante ao momento, que resume perfeitamente a trajetória do boxeador.

Na última cena, o protagonista cita a icônica passagem de “On The Waterfront”, de Elia Kazan, em que o personagem interpretado por Marlon Brando lamenta, diz que poderia ter sido um campeão e que precisava de mais apoio.

Jake foi um campeão e tinha tudo para ser um dos principais lutadores da história, no entanto, seu temperamento afastou todos aqueles que o amavam e se importavam não só com sua carreira, mas com sua felicidade.

A dinâmica com seu irmão é fascinante, repleta de afeto e honestidade. Joey é o seu empresário e responsável por tentar mantê-lo calmo. Ainda assim, logo no início, Jake o obriga a socar seu rosto diversas vezes. Quando o protagonista se interessa por Vickie, faz perguntas ao irmão como se fosse um detetive, colocando-o contra a parede repentinamente. No primeiro diálogo entre os dois, a moça fica atrás de uma grade, ressaltando sutilmente sua futura condição.

Jake remói qualquer informação, é obsessivo, agressivo e abusivo. Antes de uma importante luta, Vickie diz despretensiosamente que seu adversário é bonito. Essa fala destrói o seu dia e faz com que ele coloque Joey na cola da esposa. A vitória pouco importava, seu objetivo era destruir o rosto de Janiro.

As pessoas ao seu lado precisam se provar inocentes a todo instante. Sua insegurança e fragilidade são tantas, que Vickie não pode sair, nem cumprimentar outros homens. Ele a agride fisicamente, mas é a insistência e a desconfiança que a levam a loucura, a se tornar uma prisioneira de sua própria existência. Vickie surge de branco, a câmera lenta e o sol que reflete em suas pernas balançando na água a colocam numa posição angelical. Em seu arco, o silêncio e o medo são acompanhados de roupas pesadas e escuras.

Jake parece acreditar piamente que não vale nada e faz um tremendo esforço para provar que “está certo”. Ele passa do limite quando pergunta para o irmão, que o ajudou em relação a Vickie e esteve sempre ao seu lado, se ele o havia traído com sua esposa. O olhar do protagonista é assustador e o de Joey denota mágoa e decepção.

“Fiz muita coisa errada. Deve ser castigo”.

O ringue não representa somente a chance de ser campeão, é o seu purgatório, onde sofre as punições por sua paranoia e descarrega seus sentimentos destrutivos. A condução de Scorsese nessas sequências é bastante especial. O diretor não preza pelo realismo, não está interessado em mostrar uma luta de boxe, mas em entrar na psique do protagonista e entender a simbologia do ringue. Os planos fechados diminuem o espaço e o design de som, responsável por inserir sons de bichos e trovões, reflete a animosidade dos combates. Os cortes constantes salientam a intensidade dos golpes desferidos e os flashes das câmeras soam como armas. Os planos holandeses reforçam o extremo cansaço dos boxeadores. Os banhos de sangue vão ao encontro da conotação dada por Jake às suas lutas. A fumaça deixa o ringue praticamente em chamas – o inferno em sua forma mais visceral. O zoom na luva de Sugar Ray Robinson, o uso de contraluz e o contra-plongée aumentam seu tamanho e imponência. Esses artifícios enfatizam que “Raging Bull” não é um “filme de esportes”, mas um drama/estudo de personagem sobre um homem tomado por um ciúme cego, que reconhece seus pecados, mas não tem forças para se desvencilhar de sua personalidade nociva e descontrolada.

A câmera lenta exibe a perspectiva de Jake, seja para transformar Vickie em um anjo, seja para tornar um simples diálogo em algum tipo de traição – declínio mental.

Em determinado momento, Scorsese utiliza freeze frames e vídeos caseiros para mostrar o progresso do protagonista e a fotografia em preto e branco passa a ter cores. Ou seja, Jake poderia ser um sujeito razoável e feliz, quer apenas provar o contrário para os demais, desafiá-los.

Poucas figuras são tão contraditórias e complexas, querendo, ao mesmo tempo, ser amado e ser um campeão, aceitando sua destruição completa.

Seu talento é notável, seu lugar é no ringue e não são os esquemas de aposta que o derrubam, mas sua consciência. Nesse sentido, a ausência de Joey é significativa – era o irmão quem o colocava na linha, sendo o seu grande amigo e mentor. A melancólica aposentadoria no boxe é apenas uma sombra de sua derrocada como ser humano.

Sua dificuldade em admitir fragilidades é exposta brilhantemente na cena em que Vickie liga para Joey e ele não consegue pedir perdão, nenhuma palavra sai de sua boca.

A fumaça o acompanha em sua fase de “comediante”. A punição é eterna, pois, em vez de se desculpar e abraçar aqueles que o amavam, ele prefere seguir sua jornada infernal.

Gordo e em cima de um palco, Jake é só um homem patético e machista.

Na cadeia, não tem Joey, Sugar Ray Robinson ou quem quer que seja para puni-lo, logo, o protagonista, preso a uma assustadora escuridão, soca a parede e bate com a cabeça no concreto.

A montagem é impecável ao tratar as felicidades de Jake como passageiras, a partir de cortes abruptos que nos levam da conquista do título para o momento em que ele acusa o irmão. Essas transições são frequentes e compõem perfeitamente sua natureza.

A direção de arte acerta ao preencher a casa do protagonista de iconografias religiosas, validando toda a questão envolvendo o purgatório e que acentua a contradição acerca de Jake.

A trilha sonora é deslumbrante, provocando emoções na medida certa e combinando com a atmosfera concebida por Scorsese.

Não poderia deixar de citar o elegante plano sequência que sucede a luta do protagonista pelo cinturão.

Joe Pesci oferece uma das melhores performances de sua carreira, cheia de afeto, receio e controle. Seu habitual destemperamento aparece em uma sequência que funciona graças ao seu timing para o humor. Joey é o tipo de personagem que respeita as tradições familiares ao máximo e o fato de cortar relações com o irmão o machuca muito. Sua aparência no desfecho não deixa dúvidas.

Robert De Niro foi quem levou a história de Jake LaMotta a Scorsese e o seu empenho proporcionou uma das interpretações mais impressionantes de todos os tempos. Sua transformação física merece inúmeros elogios. Não se trata apenas de um capricho. No auge do protagonista, De Niro está fortíssimo, no fim, está inchado e gordo. Muito da complexidade de seu arco está em sua aparência – a destruição absoluta.

Seus olhares e falas meticulosamente pausados e repetidos são arrepiantes, realçam sua imprevisibilidade e brutalidade.

“Raging Bull” é uma obra prima poderosíssima.

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